sábado, maio 14, 2016

Verdades Irrefutáveis




Barrigas de Aluguer

















A Assembleia Nacional aprovou legislação que permite as “barrigas de aluguer”, ou seja, mulheres que, por exemplo, não têm útero -  há as que nascem sem ele, improvável mas pode acontecer -  embora possuam em perfeitas condições a parte restante do seu aparelho reprodutivo. Numa situação destas, é tecnicamente possível recorrer a uma barriga de aluguer, muitas vezes acontece ser uma irmã, onde é depositado o óvulo fecundado para aí se desenvolver.

É o aproveitamento de técnicas científicas a favor de uma maternidade que não aconteceria sem o recurso a esta técnica.

Para mim, para muitas pessoas, e para a maioria dos nossos deputados, pareceu-nos bem. Se a técnica existe, se permite a concretização de um anseio de que depende a felicidade de uma pessoa ou de um casal, porque razão não o utilizar?

Contudo, não pareceu bem ao Sr. Padre Feytor Pinto, distinto representante do nosso clero, ex-coordenador da Pastoral da Saúde porque, segundo afirma, vai contra a ética, subentende-se que religiosa, embora, para o Sr. Padre, não haja outra.

A presença da Igreja católica é indispensável em dois momentos essenciais da vida humana: nascimento e morte.

São momentos cruciais que marcam a sua importância para o resto da vida, neste mundo e no outro, e aos quais a igreja não pode faltar para que o exercício do seu poder de influencia junto dos crentes se exerça em toda a sua plenitude.

A Igreja católica, ciosa desse seu poder, tem sido contra todos os avanços científicos que “mexam” com o nascimento e a morte, indo ao ponto de, em tempos, ser contra as vacinas porque entendia que a vida pertence a Deus e só ele tinha poderes para dispor dela., prolongado-a ou encurtando-a.

Mais recentemente, o uso de preservativos também não era aceite pela doutrina religiosa por razões idênticas, embora seja reconhecido, de há muito, que o controle da natalidade em sociedades pobres e atrasadas nas quais, mais filhos, significa mais fome e miséria social e humana, seja indispensável, chegando-se ao ponto do exagero dos chineses com a política do filho único que conduziu à falta, hoje, de raparigas em idade de casar, porque os pais preferiam rapazes.

Depois, mais tarde e por vergonha perante os seus próprios seguidores, para evitar o que seria um clamor público acaba por aceitar esses avanços da ciência que são em prol da qualidade da vida das pessoas.

Para a Igreja, um homem é sempre um homem “macho” e deve comportar-se como tal, ou então não se comporta, abstêm-se, procurando, para isso, força nos confessionários pelo recurso à sua fé em Deus.

Quanto à mulher, é exactamente o mesmo, idem, idem, aspas, aspas.

Condenando os casamentos homossessuais, o que a igreja defende é uma descriminação dos sexos em que uns podem fazer uma coisa e outros não, na linha dos filhos nascidos em barriga de aluguer que vão contra a ética, de acordo com o Sr. Padre Feytor Pinto.

Quem não respeitar estas regras e desobedecer viverá em pecado, em conflito permanente com a sua religião, pondo em causa permanentemente a sua estabilidade de crente e o seu futuro neste mundo e no outro. A ameaça de castigo, a instalação do medo é a grande arma das religiões.

O Pai Divino não exerce o seu poder só para o bem, ele tem os seus critérios e, como qualquer pai, também castiga e, por vezes, de forma incompreensível...

Lembram-se do terramoto de Lisboa de 1 de Novembro de 1775, à hora em que toda a gente estava a rezar nas igrejas, matou mais de 60.000 pessoas, destruiu a cidade, e fez perceber que afinal, ou a lógica era uma batata, ou Deus não queria saber de nós para nada, pelo menos dos lisboetas...

Será esta a ética a que se refere o Sr. Padre, a ética religiosa, ou a outra que diz que a vida deve resultar de dois gâmetas unidos desde a sua fusão até ao nascimento da criança, ou então não há criança?

Claro que há dificuldades a ultrapassar. O ideal é que todos os casais pudessem ter os filhos que quisessem de forma natural mas que isso não sirva de desculpa...

Whitney Houston - One Moment in the Time



Mixórdia de Temáticas - O Gato



Tieta do Agreste
(Jorge Amado)







EPISÓDIO Nº 146



















Em geral, o vate não se faz de rogado para declamar seus poemas mas está de calunda, a vaidade ferida com a falta de respeito dos seus concidadãos; pede desculpas, mas… Tieta intervém:

- É claro que você vai dizer a poesia, não guarde agravo. De qualquer maneira tinha de recitar para mim que não pude ir, não é mesmo? – os olhos marotos postos em Barbozinha. – Então meu velho? Estamos esperando, lasque o verbo…

Barbozinha obedece. Amoroso trovador, submisso às ordens de sua musa, põe-se de pé, retira do bolso de dentro do paletó duas folhas de papel, caprichada caligrafia, sonoros alexandrinos. Pigarreia, solicita um gole de pinga para lavar a garganta, Araci corre a buscar. O poeta emborca a cachaça, estala a língua, estende a mão e desfralda a voz.

Arauto de boa nova, anuncia o nascimento de Cristo, pobre e nu, na manjedoura em Belém. Que venham as crianças de agreste, todas, sem excepção de nenhuma, participar da alegria universal, pois à infância pertence essa festa por decisão da benemérita Brastânio, cujos proprietários, nobres e magnânimos construtores da pátria grandiosa e justa, atiram braçadas de brindes valiosos no regaço da pobreza, transmudando as lágrimas das crianças desprovidas em risos álacres, em pipilar de pássaros, em gorjeios de aves felizes.

Buscara inspiração na Bíblia e na beleza do chão, do rio, do mar, molhara a pena nos profundos sentimentos de solidariedade humana. Assim iluminou obscuros lares com estrelas d’alva, comparou os directores da Brastânio a novos Reis Magos descobrindo os ásperos caminhos de Agreste, trazendo nas mãos da bondade, ouro, mirra e incenso. Rimou a pobreza do povo com a grandeza nacional, o infeliz menino dos outeiros de Agreste com o infame divino, rei da Judeia, rimou titânio com Ascânio. Ascânio Trindade, capitão da aurora, a romper os muros do atraso, a abrir as comportas do progresso.

Leonora, empolgada, ergue-se em aplausos, os demais a acompanham: palmas e exclamações entusiásticas. Triunfo completo a compensar a decepção anterior.

- Chegue aqui, quero-te dar um beijo! – exige Tieta e beija o vate na face maltratada, imprimindo-lhe nas rugas as marcas dos lábios, em baton cor de vinho.

- Bravos, Barbozinha, gostei muito. Merecido, esse elogio a Ascânio – considera dona Milú. – Ascânio não desanima e se um dia Agreste voltar a valer alguma coisa, a ele se deve. A ele e a você Tieta. Foi você chegar e tudo mudou: foi como um clarão nos iluminando. Não falo da electricidade de Paulo Afonso, falo de qualquer coisa que eu mesma não sei explicar, não passo de uma velha boboca. Uma coisa que a gente não vê, não toca mas existe, uma luz que veio com você, minha filha, Deus a abençoe.

Aproxima-se da rede e beija Tieta com carinho maternal. Despede-se. - Vou-me embora, Carmô deve estar sobre brasas, vai-me dizer muitas e boas. Com razão.

Ascânio pede-lhe mais um minuto apenas, por favor. Pondo-se também de pé, faz sua proclamação aos povos, anuncia a nova era, a era da Brastânio. Não acrescentou seu nome ao da grande indústria de dióxido de titânio, por desnecessário. Merecendo apoio e aplauso dona Milú, já o fizera De Matos Barbosa em versos que Leonora decorou e repete baixinho, entreabertos os lábios de carmim.

Truques...













Um pai de família judeu chama o seu filho, na ante-véspera do Ano Novo da sua religião e lhe diz:

- Jacózinho, eu odeio ter que estragar o teu dia, mas tenho que te dizer que a tua mãe e eu vamos-nos divorciar, depois de 45 anos de convivência.

- Papai, o que você está dizendo?! – grita o filho.

- Não conseguimos mais nem nos olhar um ao outro – disse o pai, e completou: – Vamos-nos separar e acabou. 

Liga para a tua irmã Raquel e conta-lhe sff.

Desvairado, o rapaz liga para a irmã, a qual explode no telefone.

- De maneira nenhuma os meus pais se divorciarão!! Chama o pai já ao telefone!

Quando o velho atendeu ela disse-lhe aos berros:

- Não façam nada até nós chegarmos aí amanhã. Estou a chamar o Moisés, que está em viagem, e amanhã mesmo estaremos aí, percebeste?!!! – e bateu o telefone sem deixar o pai responder nada.

O velho colocou o telefone no lugar, virou-se para a mulher e sorridente disse:

- Ok Sara, afinal eles sempre estarão cá no Ano Novo e não temos de lhes pagar as passagens!!!

Assim Nasceu Portugal
 


A Profecia da Normanda








Episódio Nº 7

















Mirou Afonso Henriques e no seu olhar não havia nenhuma recriminação ou indício de atribuição de culpa, pois não considerava o príncipe responsável pelo suicídio de Raimunda.

Com um sorriso compreensivo, interrogou-se:

- Quem somos nós para entender o mistério da vida e da morte?

- Porque se matou Raimunda? Porque não foi bem amada por mim, seu pai? Talvez... nunca soube como falar com ela.

Meu tio sempre tratara a filha com alguma distância, mas isso era habitual com os bastardos e as bastardas. Agora que ela já não estava entre nós, admitia a possibilidade de lhe ter faltado com algo, carregando a tormenta póstuma de um progenitor alheado.

- Não me lembro de a ter abraçado uma única vez – depois, olhando de novo para o príncipe, murmurou: - Como vedes não sois o único a sofrer com as mulheres.

De repente, Afonso Henriques ergueu a sobrancelha, pois nascera nele um laivo de curiosidade.

Como morreu a mãe dela?

Meu tio Ermígio torceu o rosto num esgar como se lhe causasse dor ter de revisitar tempos antigos. Mas respondeu:

 - Ao dar à luz.

Tanta parcimónia descritiva não satisfez Afonso Henriques, que quis saber quem era ela e onde meu tio a conhecera. O príncipe parecia pela primeira vez interessado numa história exterior a si mesmo e Ermígio Moniz lá acabou por narrar o nascimento de minha prima.

Partido de Lamego, meu tio rumara a Compostela, visitara Leão, Sahagún e Toledo. Depois descera a terras muçulmanas, a Oreja, Jean, Sevilha, Córdova e Mérida, e por lá conhecera uma rapariga tímida, mas muito carinhosa, a quem se afeiçoara.

Dominado pelos imperativos masculinos, curou com ela uma parcela do seu anterior desgosto e, embalado por aquele doce interregno de ternuras, não pensara em partir até ao dia ao dia em que fora surpreendido pelo inesperado desaparecimento da moça.

Permanecera semanas no local, sempre à espera de que a jovem reaparecesse, mas, como isso não aconteceu foi forçado a seguir a sua viagem.

Conhecida a Andaluzia árabe, subira a Saragoça e a Barcelona onde apanhara um barco até Roma.

Mais de um ano depois, quando se sentiu em paz e aceitou finalmente o seu destino inglório de viúvo, decidiu regressar e, como sempre acontece com os homens tristes que se apegam a uma mulher, voltou à cidade onde se sentira bem.

Contudo, o destino presenteou-o com novo desgosto, quando encontrou na casa onde estivera apenas uma velha criada com uma criança nos braços, órfã da mãe que a gerara.

 - Foi um segundo e cruel sofrimento.

Como a idosa ameaçasse entregar a menina, meu tio tomou posse da bastarda e regressou ao condado Portucalense.

 - Tentei tudo para que Raimunda fosse feliz, a viver convosco, seus primos – disse Ermígio Moniz, olhando para mim.

Ainda curioso, o príncipe perguntou:

 - Como se chamava a mãe dela?


A falecida respondia pelo nome de Aqsa e logo Afonso Henriques quis saber se era moura, o que meu tio confirmou. Antes do desaparecimento, haviam combinado que ela se converteria ao cristianismo, se ficassem juntos, coisa que nunca veio a acontecer. 

sexta-feira, maio 13, 2016

Verdades Irrefutáveis





Os três pastorinhos. À direita, a espertalhuca da Lúcia, que sobreviveu.
Fátima 

- 13 de Maio




























Nascida para lutar contra a República e transformada em arma de arremesso contra o comunismo, Fátima mantém-se como símbolo da crendice popular e caixa de esmolas que sustenta a máquina eclesiástica.

Os ateus, obviamente, são sensíveis ao sofrimento humano, às manifestações de aflição, ao desespero e aos dramas individuais que exoneram a razão dos comportamentos.


Já não podem ter a mesma benevolência para quem convence os crentes do gozo divino com as chagas nos joelhos e as maratonas pedestres ou com a oferta de objectos de ouro que atravessaram gerações na mesma família para acabarem no cofre forte da agiotagem mística.



Os alegados milagres das cambalhotas solares, das deambulações campestres da virgem e da aterragem de um anjo não foram originais nem exclusivas da Cova da Iria.


Foram tentados em outras latitudes e repetidos em versões diferentes até atingirem a velocidade de cruzeiro da devoção popular e o pico da fama que tornou rentável a exploração.

Há um ano o cardeal Saraiva Martins, um clérigo atrofiado por longos anos de Vaticano, dedicado à investigação de milagres e à pesquisa da santidade, presidiu à peregrinação... contra o ateísmo.

Podia ser a favor da fé, mas o gosto do conflito levou a Igreja a deixar cair a máscara da paz e a seguir o carácter belicista que carrega no código genético.

Há militares que regressaram há mais de quarenta anos da guerra colonial e que, ainda hoje, vão a Fátima agradecer o milagre do retorno, milagre que muitos milhares não tiveram, vítimas da civilização cristã e ocidental para cuja defesa o cardeal Cerejeira os conclamava.

Perdido o Império, desmoronado o comunismo, o negócio mudou de rumo e de ramo. É o emprego que se mendiga a troco de cordões de oiro, a saúde que se implora de vela na mão, a cura suplicada com cheiro a incenso e borrifos de água benta. 

Enquanto houver sofrimento o negócio floresce. 

Dos bolsos saem os euros dos peregrinos e os olhos dos crentes enchem-se de lágrimas perante a imagem de barro que a coreografia pia carrega de emoção.

Para o ano, no mesmo dia, repete-se a encenação e os corações dos devotos rejubilam com fé na virgem, igual à que os índios devotam às fogueiras para atraírem chuva. Com os joelhos esfolados, os pés doridos e o coração a sangrar.




Carlos Esperança

(Presidente da Associação Ateísta Portuguesa) 




COMENTÁRIO:

A crença religiosa, infelizmente, não se vence nem pelas evidências mais óbvias nem pelas acusações mais certeiras. A necessidade de acreditar mergulha nos primórdios da nossa evolução e, se então, constituiu factor de sobrevivência,- O Prémio Nabel, Richard Dawkins explica isso muito bem no seu "best-seller" A Desilusão de Deus - de há muito que, habilmente aproveitada, se transformou em instrumento de manipulação de consciências tendo em vista o poder, o poder espiritual que, entre nós, mundo católico, já foi também temporal.
Factor de instabilidade e de guerras crueis ao longo da história da nossa civilização, é hoje, como sempre foi, um grande e escandaloso negócio. Só em "souvenires", Fátima, factura 30 milhões anualmente. 
Por ironia, a crença é como uma espécie de "cruz" que a humanidade transporta às costas para infelicidade sua.Triunfar sobre ela, apenas pelo uso da razão e do conhecimento parece quase impossível, embora haja progressos que a igreja combate. Há progressos...mas irá levar tempo, embora o número de ateus ou de indiferentes, especialmente estes, não para de aumentar

A libertação do fenómeno da crença, enraizada no nosso cérebro é uma tarefa pessoal que exige coragem, especialmente para todos os que a receberam como uma das mais precoces e importantes heranças.
Entretanto, nada poderemos fazer por aquela mãe que, caminhando de gatas, com a filha de tenra idade deitada a dormir sobre as costas, lá ia em peregrinação na direcção da Cova da Iria...
Espectáculo degradante que constitui a melhor garantia de negócio para a Igreja no futuro próximo...
Nem um, daqueles padres progressistas que por lá deveriam estar, lhe estendeu a mão para a levantar e ajudar a caminhar erecta com a recomendação de que os caminhos para Deus, ou para onde for, não se alcançam a rastejar como os bichos. De pé, "de pé como as árvores" como dizia a saudosa Palmira Bastos.
A imagem repugna-lhes, por um lado, mas agrada-lhes por outro... são o seu exército, educado, preparado para obedecer, a eles, que se reclamam de intermediários, representantes, interlocutores de Deus que ali se confunde com a Srª de Fátima  com os mesmos poderes de cura e de milagres e como muitas outras Senhoras espalhadas em outros tantos locais de culto por esse mundo fora.
Também eu, em garoto, como aluno do Colégio de Jesuitas do São João de Brito, andei, às tantas da noite, numa daquelas procissões das velas, grande motivo de brincadeira para mim e para os meus colegas e desespero dos padres que tomavam conta de nós...
E transcrevendo José Carlos Espada:
- "Para o ano, no mesmo dia, repete-se a encenação e os corações dos devotos rejubilam de fé na virgem, igual à dos índios que devotam às fogueiras para atraírem chuva. Em termos de fé, ficámos lá, na fogueira, na dança da chuva...

Eu Te Darei o Céu - Roberto Carlos

Anos Sessenta... princípio de carreira.


Reencontro...

Eles têm a capacidade de perdoar...



Tieta do Agreste
(Jorge Amado)



EPISÓDIO Nº 145























ONDE FINALMENTE BARBOZINHA DECLAMA COMO DEVIDO SEU POEMA E ASCÂNIO TRINDADE LANÇA PROCLAMAÇÂO AOS DE SANTANA DO AGRESTE



Soldados de derrotado regimento da caridade, batendo em retirada, atravessaram a praça e refugiaram-se em casa de Perpétua, onde, na varanda, estendida na rede, Tieta convalesce. Animada curriola, repartida entre a indignação e o riso, ainda sob o comando de dona Milú, demissionária:

- Ai, Tieta, minha filha, não tenho físico para aguentar uma tareia dessas. Para outra igual, Ascânio não conta comigo.

Arrastam cadeiras, colocam-se em torno da rede. Tieta reclama detalhes, enquanto beija a mão de padre Mariano e se regala a admirar Ricardo, ainda de sobrepeliz branca, levita do santuário. O reverendo veio apenas dizer-lhe bom dia mas aceita um copo de suco de cajá antes de retornar à igreja, arrastando consigo o seminarista. Tieta prende um suspiro, sócia de Deus, cada qual com os seus horários.

Elisa, mancando, vai à cozinha preparar um café bem forte para o ofendido Barbozinha. A pequena Araci equilibra nos braços magros pesada bandeja com copos de sucos de frutas: de manga, de mangaba, de cajá, de umbu. As primas de Seixas espiam para o interior da casa onde penetram pela primeira vez, desejando bispar o máximo. Cutucam-se maliciosas, envesgam os olhos para a rede onde as carnes rijas de Tieta se exibem no decote e no abandono do negligé de nailon, amarelo com redes brancas, o fino.

Perpétua escolta o padre até à porta da rua. De regresso elogia o gesto dos industriais, a valiosa oferta de brindes de natal às crianças da cidade. Tentara convencer Peto a entrar na fila mas o peralta sumiu de suas vistas. Da janela, espiara o movimento, condena a má educação do povo.

- Essa gentinha não merece a caridade de ninguém. Então os homens mandam um avião de presentes e o resultado é essa vergonheira… Até dá nojo.

Tieta toma a defesa do povo do Agreste, humanidade sofrida, condenada à miséria, cujos filhos não conhecem outros brinquedos além de bruxas de pano e caminhões feitos com restos de madeira, tampas de cerveja no lugar das rodas.

- Eles são pacientes demais.

Dividem-se as opiniões, a discussão ameaça pegar fogo, a atmosfera guerreira da Prefeitura invade a pacífica varanda da mansão onde as paulistas onde as paulistas se hospedam. Seixas, por uma vez exaltado, a favor de Tieta, defendendo o direito dos povos à revolta. Elisa, exibindo o pé inchado, consequência do pisão de potente lavadeira disposta a obter bonecas e cornetas para os oito filhos, não encontra desculpas, nem para a má-educação do zé-povinho nem para a ausência da malta do bilhar.

Não se refere a Astério, de plantão na loja, sem poder abandonar o balcão, na véspera de natal sempre se vende alguma coisa. Mas Osnar, Aminthas, Fidélio, eles e outros, deixaram-se ficar no botequim, de taco e giz na mão, em vez de atender ao pedido de Ascânio comparecendo à Prefeitura para ajudá-las a conter as feras, porque não passam de feras…

Presidente da comissão de Honra, dona Milú, devia ser a mais indignada, a primeira a condenar a grosseria geral. Muito ao contrário, defende os canibais:

- Feras coisa nenhuma! Pobres, somente pobres e nada mais. Brigando, se atropelando por uma bonequinha de plástico que não vale dez réis de mel coado, por uma corneta de latão, para dar aos pobrezinhos dos meninos. Por falar nisso, que ideia péssima essa de oferecer cornetas… Não podiam escolher outra pinóia qualquer?

Observação com a qual todos estão de acordo: o vibrante concerto de cornetas, tantas e tão estridentes, sopradas em conjunto, fora o pior da festa. Dona Milú volta-se para o poeta que ainda não abriu a boca:

- Tenho que ir embora, deixei Carmô na cama, com febre; quando se resfria fica enjoada como ela só, vira alfenim. Mas antes quero ouvir os versos de Barbozinha. Lá não deu jeito. Por causa das cornetas.

Assunto: Diagnóstico infalível...
 



















A empregada, chorando, pega sua mala e se despede da patroa que lhe pergunta:

 . Ué, onde você vai?
 
- Para minha terra Dona Fro, morrer junto dos meus.
 
- Mas o que aconteceu, querida?

- Óh Dona Fro, a senhora mesmo fala que o seu marido é um excelente médico e nunca errou um diagnóstico.
 
- Pois é, é verdade, ele nunca se engana no diagnóstico... Mas, o que tem isso a ver com a sua saída de casa?
 
- Então Dona Fro, é que o Dr. hoje pela manhã, antes de ir embora, me disse, apertando minha bunda com as duas mãos:
 
- DESTA NOITE NÃO PASSAS !!!

Assim Nasceu Portugal

A Vitória do Imperador

A Profecia da Normanda




Episódio Nº 6















- E agora a desmiolada da Chamoa faz-me isto! Emprenha do primo quando finalmente se podia entregar a mim?

A sua voz enrouqueceu e a raiva foi mitigada por uma névoa de desilusão de desilusão, que tentou avançar com mais uma proclamação excessiva.

 - Não tenho sorte com as mulheres!

Eu não o contestei pois sabia que os seus desabafos magoados eram o fruto incómodo de uma aguda dor de corno que aos vinte e um anos se sobrepunha, naturalmente, à fina lucidez, mas Teresa de Celanova rebateu estes desanimados argumentos, apresentando uma razão religiosa.

 - Tendes de saber perdoar, príncipe, assim nos ensina Deus.

O seu pedido caiu em saco roto, pois o meu amigo recusou cumprir as leis terrenas da Providência e persistiu na sua teimosia acintosa.

Jamais ficarei com mulher usada por outro! – declarou, acrescentando um novo lamento – As mulheres só me causam sofrimento.

Cansado com a permanente repetição desta ladainha, o meu tio Ermígio Moniz tomou coragem para lhe recordar que, antes dele, muitos homens tinham passado por idênticos sofrimentos.

Olhai o meu caso, todas as mulheres que amei me morreram – recordou em voz solene.

Tal como meu pai, meu tio era um homem de média estatura, com os cabelos já acinzentados. Com mais de quarenta anos, nos seus olhos escuros e baços notava-se a desilusão dos tristes, embora o seu sorriso pacífico revelasse uma aceitação serena das agruras com que a vida o brindara.

A sua esposa acompanhara-o apenas dois anos e só a virgem Maria sabia o quanto chorara a sua prematura morte.

Vi, pelo canto do olho, meu pai confirmar com um aceno de cabeça. Os irmãos Moniz não só eram fisicamente parecidos, como partilhavam uma solidariedade pesarosa, pois a prematura viuvez de ambos era resultado de doenças inesperadas das respectivas mulheres.

Fiquei louco de tristeza – confessou meu tio – Pensei em morrer também, para me juntar a ela no céu.

Associei aquele pensamento lúgubre à partida súbita e fatal de sua filha Raimunda. Talvez esta tivesse herdado do pai a propensão pelos abismos negros, acrescentando-lhe a trágica vontade para executar um acto tão extremo que meu tio nunca tivera.

Só me curei com uma longa viagem. Andei três anos pelo mundo, como um sonâmbulo pela noite – contou ele.

No mesmo ano em que o conde Henrique morrera, tinha Afonso Henriques três anos e eu quatro, Ermígio Moniz partira para um demorado passeio que o levara primeiro por terras de Hispânia e depois pelos mares mediterrâneos.

A vossa prima foi o fruto dessa peregrinação. Trouxe-a no regresso e tentei educá-la, mas também ela se entregou a Deus.


quinta-feira, maio 12, 2016

Hoje, Dilma, não sorri
E agora?...




























A esta hora Dilma já foi destituída do cargo de Presidente do Brasil, suspensa por 180 dias, não por um golpe de Estado mas por uma instrumentalização da lei, o que, do ponto de vista político, talvez não seja muito diferente.

É uma decisão perigosa para o Brasil, é um pouco como aqueles jovens, meio-loucos, inconscientes, sedentos de aventuras, mesmo aquelas que ponham em risco as suas vidas.

O que virá depois de Dilma não se sabe, rigorosamente ninguém sabe, para além de que o Vice vai subir a Presidente mas, do ponto de vista social, é uma incógnita e não se espera que seja algo de melhor, havendo observadores que referem que as rupturas são tão grandes que falar de uma guerra civil não será nenhum disparate.

É verdade que já há vizinhos que se deixaram de falar mas, pessoalmente, não me parece que os brasileiros tenham muita propensão para guerras civis o que não exclui desordens, confrontos, com a própria Dilma, no seu discurso depois de exonerada, falar que foi vítima de um golpe de Estado, ela, que tinha sido eleita democraticamente por 56 milhões de brasileiros, e se vê agora destituída do poder, apelando ao povo para ir à luta.

O Brasil parece uma sociedade em desagregação. Durante alguns anos, no tempo de Lula da Silva, com os proveitos do petróleo a preços escandalosamente altos “taparam-se buracos”, distribuindo apoios sociais às pessoas mais carenciadas que lhes melhoraram a qualidade das suas vidas, mas o benefício durou apenas enquanto existiu dinheiro.

Esta visão de curto prazo pode ser suicidária porque aguça o apetite das pessoas tornando mais difícil o regresso às dificuldades anteriores.

Melhora-se hoje sabendo, desde logo, que vai piorar a seguir, de acordo com o velho ditado português de que “enquanto o pau vai e vem folgam as costas”...

Um país deve preparar o futuro da mesma forma que os pais fazem com os filhos, investindo neles em educação e formação profissional, dando-lhes bases para que eles possam concorrer melhor com os outros quando forem crescidos.

Sabemos que há opções que não são fáceis de tomar como pais ou como governantes e sabemos que Lula da Silva se deparou com situações de fome generalizada em algumas regiões às quais procurou atender com as Bolsas Família.

Como criticá-lo por isso? – A saída certa será sempre uma solução de compromisso que não sacrificando o presente também não esqueça o futuro, mas o povo brasileiro terá que ser sempre o principal autor do seu próprio destino.

Lembro sempre, o que disse o Presidente Kennedy: -“Não pergunteis o que o Estado pode fazer por vós mas sim o que vós podereis fazer por ele...”.

Esta mesma pergunta pode ser feita em todos os países, nomeadamente no Brasil, e da resposta das populações dependerá o futuro.

Neste momento, a sociedade brasileira está em polvorosa. O novo Presidente vai apresentar-se com um novo elenco, gente que vai, com certeza, ser contestada fortemente e a instabilidade vai instalar-se mais do que nunca.

George Harrison - My Sweet Lord



Mixórdia de Temáticas - Em que Habita...



Tieta do Agreste
(Jorge Amado)





EPISÓDIO Nº 144





















Dona Milú não ri, dá ordens:

- Boneca, automóvel, corneta, fogão e reco-reco só para os necessitados.

A fila está cheia de gente que não precisa, uma vergonha. Para esses, uma bola de ar ou um queimado, e olhe lá! Estão aqui porque os pais não têm brio na cara.

Para que não haja dúvidas exemplifica:

- Estás ouvindo, Dulcineia? Teus filhos estão na fila, como se a padaria não desse dinheiro. Teu irmão também, Georgina, um moleque grande daqueles. Só quero ver.

Apenas Leôncio destranca a porta e permite a entrada, a fila se desfaz, a meninada avança em bloco, mães e pais postam-se diante da mesa de mãos estendidas, empurram as cadeiras.

A poder de gritos e de alguns puxões de orelhas, padre Mariano contem a avalancha durante os minutos necessários à cerimónia da bênção. Ao terminar, ainda tenta cometer pequeno sermão mas desiste diante da gritaria e da balbúrdia que, de imediato, se estabelecem. Padre Mariano, Vavá Muriçoca e Ricardo são envolvidos pela leva de candidatos aos donativos da Brastânio.

Indiferente aos brindes mas amiga da confusão, dona Edna se aproveita e, em meia água benta e ao incenso, consegue ao mesmo tempo apertar a mão de Leléu em doce promessa e roçar a bunda na batina de Ricardo, façanha limitada, porém divertida e grata.

Torna-se impossível qualquer espécie de controlo, fracassam as tentativas de distribuir bonecas e fogões às meninas, automóveis e cornetas aos meninos, bolas de ar e caramelos aos filhos de gente endinheirada. Um tumulto, um motim: a comissão imprensada contra a parede, as cadeiras derrubadas, mãos maternas arrancando os brindes. A donzela Cinira tem uma tontura e desmaia, Elisa sai à procura de um copo de água. Falta de homem, diagnostica dona Milú desistindo de distribuir brindes para aplicar beliscões cascudos nos moleques mais ousados.

Desaparece rapidamente o monte de brinquedos. Os retardatários recebem tão-somente a estampa colorida com a efígie de Jesus e as frases da oferenda da Brastânio.

Na rua, estouram discussões entre mães e pais, duas mulheres do Buraco Fundo se agarram pelos cabelos, crianças se batem entre choros e xingos. Vencidas, arrasadas, desfeitos os penteados, amarrotados os vestidos, senhoras e moças da comissão de honra ameaçam chiliques. Dona Dulcineia retirou-se às pressas, após entregar aos filhos corneta, boneca, fogão e automóvel, levando ela própria reco-reco e língua de sogra, balas para o marido; para isso aceitou participar da comissão, dona Milú que vá pregar para outra freguesia.

Georgina afoga os soluços no lenço, o irmão a ameaçara: vou contar a papai que você não quis me dar nem o automóvel nem a corneta, sua burra.

Em meio à barulheira dessa algazarra festiva e rude, do intolerável som de vinte abjectas cornetas de lata, o vate Barbozinha, na tribuna do conselho, declama o poema composto especialmente para a ocasião, comovente, bíblico e louvaminheiro. Em vão Ascânio, Seixas, Leléu e outros rapazes reclamam silêncio.

Também Leonora e Elisa, duas formosuras raras, erguem as vozes e suplicam, por favor, um minuto de atenção. Do poema, ali nada ou pouco se pôde ouvir, para tristeza do bardo insigne que passara dois dias e duas noites escolhendo rimas, contando sílabas e buscando informações sobre dióxido de titânio.

- Me diga, mestre Ascânio, que diabo é isso?

O que fosse, exactamente, tão pouco Ascânio o sabia. Importante, importantíssimo produto, cuja fabricação vai significar grande economia de divisas ao país, passo fundamental para o desenvolvimento pátrio. Em que consiste, porém, disso não tem a mais mínima ideia, confessara um tanto encabulado.

Ascânio resolve adiar para melhor ocasião o discurso anunciando aos povos a nova era: os povos, em bulha e correria, se retiram com os brindes, desinteressados de poesia e oratória. Mulheres pobres com os filhos escanchados nas ancas, homens mal vestidos levando crianças pela mão, molecotes soltos pelas esquinas, rapidamente a multidão se desfaz. Largadas nos caminhos, atiradas fora, as estampas com a efígie de Jesus, a frase do Novo Testamento e o nome da Brastânio. Não possuem valor de compra e troca.

Tendo Bafo de Bode pedido um brinde ou um trago de cachaça a Leôncio, este lhe ofereceu uma estampa, único brinde a sobrar.

- Por que não oferece à senhora sua mãe? – perguntou o mendigo ofendido.

O capenga Leôncio considera a festa um sucesso sem exemplo e a Brastânio organização digna dos maiores elogios. Único a receber sacola íntegra – não uma, três e com antecedência, sem empurrões nem briga – ainda conseguira surripiar uma corneta que termina dando a Bafo de Bode para se ver livre dele.

Pequena corneta de lata, vagabunda mas barulhenta, Bafo de Bode desce a rua a soprá-la, produzindo um som incómodo, arrepiante, medonho. Com ele obtém o silêncio necessário para onde Terto irá pendurar os novos chifres se já não tem lugar no corpo que não esteja ocupado. Resta-lhe enfiá-los no cu, são chifres de menino, não doem. O que diz Bafo de Bode, podre de
 bêbado, não se repete, muito menos se escreve.

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