Memórias Futuras
Olhar o futuro pelo espelho retrovisor da história. Qual história? Que futuro?
sábado, abril 07, 2012
Espero que me possa ajudar.
Saí ontem à tarde no meu carro para ir trabalhar, e deixei o meu marido em casa, a ver televisão, como sempre. Andei pouco mais de 1km quando o motor parou e não pegou mais.
Voltei para casa, para pedir ajuda ao meu marido e quando cheguei, apanheio-o em flagrante na cama com a filha da minha vizinha!
Eu tenho 32 anos, o meu marido tem 34 e a desavergonhada, 19.
Estamos casados há 10 anos e ele confessou que mantinha aquela relação há mais de 6 meses.
Eu amo o meu marido e estou desesperada. Preciso urgentemente do seu conselho .
Antecipadamente grata.
Patrícia
Cara Patrícia,
Quando um carro pára, depois de ter percorrido uma pequena distância, isso pode ser devido a uma série de factores.
Pode não haver combustível no depósito ou o filtro estar entupido, também pode ser da injecção electrónica ou da bomba de gasolina que não fornecendo combustível ou pressão suficiente nos injectores impede que o motor funcione.
Nesse caso, a pessoa a contactar deve ser um mecânico.
Não volte a incomodar o seu marido.
Ele não é mecânico.
Você está errada. Não repita mais isso.
Espero ter ajudado.
António Roberto - Psicólogo e psicoterapeuta
GABRIELA
CRAVO
E
CANELA
Episódio Nº 68
- Qual! Coisa tão fácil… - Parecia um príncipe a distribuir benfeitorias, títulos de nobreza, dinheiro e favores, magnânimo.
- E o senhor o que pensa do crime? – perguntou Iracema, fogosa morena de namoricos falados no portão de sua casa.
Malvina adiantou-se para ouvir a resposta. Mundinho abriu os braços:
- É sempre triste saber da morte de mulher bonita. Sobretudo morte assim horrível. Mulher bonita é sagrada.
- Mas ela enganava o marido – acusou Celestina, tão moça e já tão solteirona.
- Entre a morte e o amor prefiro o amor…
- O senhor também faz versos? – sorriu Malvina.
- Quem? Eu? Não senhorita, não tenho esses dons. O poeta aqui é o nosso professor.
- Pensei. O que o senhor disse parece um verso…
- Bela frase, não há dúvida – apoiou Josué.
Mundinho, pela primeira vez, prestou atenção a Malvina. Bonita moça, os olhos não o largavam, fundos e misteriosos.
- O senhor diz isso porque é solteiro – frisou Celestina.
- E a senhorita também não é?
Riram todos. Mundinho despediu-se. Os olhos de Malvina o perseguiam, pensativos. Iracema ria um riso quase descarado:
- Esse seu Mundinho… - E como o exportador se afastasse, caminho de casa: - Beleza de rapaz!
No bar, Ary Santos – o Ariosto das crónicas no Diário de Ilhéus, empregado em casa exportadora e presidente do Grémio Rui Barbosa – curvou-se sobre a mesa, ciciou o detalhe:
- Ela estava nuinha…
- Toda?
- Inteira? – A voz gulosa do Capitão.
- Todinha… A única coisa que levava era umas meias pretas.
- Pretas? – Nhô-Galo escandalizava-se
- Meias pretas, oh! – O Capitão estalava a língua.
- Devassa… - condenou o Dr. Maurício Caíres.
- Devia estar uma beleza – O árabe Nacib, de pé, viu de repente Dª Sinhàzinha nua, calçada de meias pretas. Suspirou.
O detalhe constaria dos autos, depois. Requinte do dentista, sem dúvida, moço da capital, nascido e formado na Bahia de onde viera para Ilhéus após a colocação de grau, havia poucos meses, atraído pela fama da terra rica e próspera. Dera-se bem. Alugara aquele bangaló na praia, ali mesmo instalara o consultório, na sala da frente, e os passantes podiam ver, pela larga janela, das dez ao meio-dia e das três às seis da tarde, a cadeira nova, reluzente de metais, de fabricação japonesa, o dentista elegante em sua bata branca trabalhando a boca dos clientes. O pai dera-lhe dinheiro para o consultório, nos primeiros meses fornecia-lhe mesada para ajudar nas despesas, era comerciante na Bahia, com loja na Rua Chile.
ENTREVISTA FICCIONADA
COM JESUS CRISTO Nº 45
SOBRE O TEMA: “EXISTE O DIABO?”
JESUS - Eu acho que a resposta cai com o seu peso, como os figos maduros. Em lado nenhum.
RAQUEL - O que quer dizer em lugar nenhum?
JESUS – O Inferno e o diabo não existem.
RAQUEL - Só um minuto, espere um minuto ... Acho que os nossos ouvintes estão chamando... eu vou desligar o meu celular. Vejamos… O senhor diz que o diabo não existe… mas muitas vezes falou dele.
JESUS - Sim, é verdade.
RAQUEL - Então o senhor acredita no diabo?
JESUS – Acreditava.
RAQUEL – Como acreditava? Pode explicar melhor?
JESUS - Como todos os meus conterrâneos, eu acreditava no diabo. Era isso que nos ensinaram. Também acreditava que a Terra era plana e que o sol girava em torno dela. E veja como estávamos errados!
RAQUEL - Mas o senhor mesmo foi tentado pelo diabo no deserto, e até falou com ele! Ou o senhor não se lembra? "Diz para estas pedras se transformarem em pães." E o senhor respondeu. E então o diabo levou ao pináculo do templo para se atirar lá de cima e os anjos o salvarem…
JESUS - O pináculo é aquele que tu vês além ... Olha…
RAQUEL – Aquele?
JESUS - Sim… vês?
RAQUEL - A nossa unidade móvel continua no Vale do Inferno e, de facto, a partir daqui podemos ver o pináculo, o ponto mais alto das antigas muralhas de Jerusalém, onde o diabo levou Jesus para ele se atirar de lá...
JESUS - Na verdade, eu nunca lá estive, Raquel. Não terá sido mais alguma invenção de um evangelista?
RAQUEL – O senhor não foi ao pináculo do Templo?
JESUS - Não. Além disso, tenho vertigens, eu teria caído…
RAQUEL - Voltemos ao diabo. O senhor disse que ele não existe, mas na Bíblia ele está em toda a parte. Eles o chamam de: Satanás, Lúcifer, Belzebu, o Anjo Caído, o adversário, a antiga serpente, o Diabo, o Príncipe das Trevas...
JESUS - Na Bíblia e certamente em outros livros antigos… Eu acho que a maioria dos povos antigos acreditava num espírito do mal, um tentador… e sabes por quê?
RAQUEL – Porque terão sentido a presença do mal de alguma forma…
JESUS - Não, porque então podíamos culpá-lo daquilo que é da nossa responsabilidade. Dizíamos: o diabo me tentou e eu não pude resistir; o diabo entrou no meu corpo… Ora o diabo és tu mesma quando fazes uma maldade. Acho que todos devemos assumir as nossas culpas.
RAQUEL - Temos uma chamada em linha ... Olá?
HOMEM - Esse tipo que está falando na sua estação de rádio é um charlatão, um impostor! ... Um louco possuído pelo diabo!
RAQUEL - Qualquer reacção a esta intervenção, Jesus Cristo?
JESUS - Não, nenhuma ... Isso já me diziam no meu tempo…que estava endemoniado… Deixa-o.
RAQUEL - As chamadas continuam ... Será que podemos continuar a falar sobre um assunto tão polémico?
JESUS - Claro, mas noutro lugar, Raquel. Este vale é tão quente… não há um sopro…eu vou acabar acreditando novamente no inferno…
RAQUEL - Pois procuremos uma sombra longe daqui.
Deixando o vale do inferno, Jerusalém, Raquel Perez, Emissoras Latinas.
sexta-feira, abril 06, 2012
«De João Gobern só havia a esperar, mesmo em pleno estúdio de televisão, que ao saber de um golo dramático do Benfica, o saudasse. O que fazia ele no estúdio de televisão? Opinava sobre futebol. Pois foi o que Gobern fez, e bem, de punho no ar. Ao contrário do que pensam os geómetras das linhas de passe e os aritméticos da situação de um para um, o futebol não é nada disso, é um jogo, é paixão. Esses nossos parolos cientistas da bola que falam dela como ninguém usa no mundo do futebol televisivo, exceto por cá, fazem passar a objetividade da opinião em futebol como uma virtude, quando é uma forma capada de o contar. As melhores páginas em língua portuguesa sobre futebol são de Nelson Rodrigues, cegueta incapaz de ver o relvado do meio da bancada do Maracanã, mas que narrava um jogo como ninguém, só iluminado pela cegueira pelo seu Fluminense. Soubessem as televisões o que é o futebol e só tinham gente sincera e talentosa a torcer pelos seus clubes ou, então, quem se derreta seja pela bola colada ao pé esquerdo de Messi, seja pela arrancada de galgo de Cristiano, torcendo pelo mais belo jogo do mundo. Gobern foi despedido por se emocionar com o futebol - quando essa era uma das justificações para ele ter sido escolhido. Entretanto, continuam os trios de amanuenses, cada um posto lá porque a direção de um clube o escalou, e que fingem que são imparciais em qualquer penálti, seja na "nossa" área, seja na "deles".» [DN]
Autor: Fonseca Fernandes
O dono de um circo colocou um anúncio procurando um domador de leão.
Apareceram 2 pessoas: um senhor de boa aparência, aposentado, cerca de 70 anos, e uma loura espectacular de 25 anos.
O dono do circo fala com os 2 candidatos e diz:
GABRIELA
Mundinho Falcão, tendo marcado encontro com Clóvis Costa no bar Vesúvio, viu-se envolvido pelos comentários. Sorria indiferente preocupado com seus projectos políticos aos quais se entregava de corpo e alma.
Ele era assim: quando decidia fazer uma coisa não descansava enquanto não visse realizada. Mas tanto o Doutor quanto o Capitão pareciam distantes de qualquer outro assunto além do crime, como se a conversa da manhã não houvesse sequer existido.
Mundinho apenas lastimara a morte do dentista, seu vizinho na praia e um dos seus raros companheiros no banho do mar, considerado então quase um escândalo em Ilhéus. O Doutor, cujo temperamento arrebatado sentia-se bem naquele clima de tragédia, a pretexto de Sinhàzinha revivia Ofenísia, a do Imperador:
- Dª Sinhàzinha era ainda aparentada dos Ávilas. Família de mulheres românticas. Ela deve ter herdado o destino da prima, sua vocação para a desgraça.
- Que Ofenísia? Quem é essa? – quis saber um comerciante do Rio do Braço, vindo a Ilhéus para a feira e desejoso de levar ao seu povoado o maior e mais completo sortimento de detalhes do crime.
- Uma antepassada minha, beleza fatal que inspirou o poeta Teodoro de Castro e apaixonou D. Pedro II. Morreu de desgosto por não ter ido com ele.
- Pra onde?
- Ora, pra onde… - gracejou João Fulgêncio. – Para a cama, para onde havia de ser…
O Doutor explicava:
- Para o Corte. Não lhe importava ser amante dele, o irmão teve que trancá-la a sete chaves. O irmão, o coronel Luís António d’ Ávila, da guerra do Paraguai. Ela morreu de desgosto. Em Dª Sinhàzinha havia sangue de Ofenísia, esse sangue dos Ávilas marcado pela tragédia!
Nhô-Galo surgia afobado, soltava a notícia no meio da mesa:
- Foi carta anónima, Jesuíno encontrou na fazenda.
- Quem teria escrito?
Perdiam –se num silêncio de cogitações. Mundinho aproveitou-se para perguntar ao Capitão em voz baixa:
- E Clóvis Costa? Falou com ele?
- Estava escrevendo a notícia do crime. Até atrasou o jornal. Combinei pra de noite, em sua casa.
- Então vou embora…
- Embora com uma história dessas?
- Não sou daqui, meu caro… - riu o exportador.
Era geral o assombro perante tanta indiferença por um prato daqueles, suculento, de raro sabor.
Mundinho atravessava a praça, encontrava-se com o grupo de moças do Colégio de Freiras comboiadas pelo professor Josué. À aproximação do exportador, os olhos de Malvina resplandeceram, sua boca sorriu, ajeitou o vestido. Josué, feliz por estar em companhia de Malvina, felicitou mais uma vez Mundinho, pela equiparação do Colégio:
- Ilhéus lhe deve mais esse benefício…
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
- “As imagens da Bíblia devem ser correctamente interpretadas. Mais do que um lugar, o inferno é uma situação de alguém que de forma livre e voluntária se afasta definitivamente de Deus… A condenação continua sendo uma possibilidade real, mas não nos é dada a conhecer, sem uma revelação divina especial”.
quinta-feira, abril 05, 2012
CARLOS LYRA
Fando do Brasil a propósito de Carlos Lyra:
"Existe muito questionamento em como se podem definir as características essências de um povo/nação. Na maioria das vezes busca-se atentamente observar seus modos, sua cultura, suas tradições, e daí tira-se, portanto o seu perfil. O Brasil, por exemplo, durante muitos anos foi considerado um país de selvagens, uma mata tropical onde habitavam índios antropófagos e seu povo era considerado como exótico e de pouca cultura. Essa percepção esta bem demonstrada nos relatos dos primeiros viajantes europeus que nos visitavam ainda no tempo da colônia.
Posteriormente. esses conceitos foram mudando e à medida que o mundo evoluía, os meios de comunicação iam encurtando as distancias e o século vinte avançava, fomos caracterizados e rotulados como o país do futebol e do carnaval. Continuávamos, no entanto, ainda sendo observados com uma visão estereotipada daqueles que se consideravam arautos do saber, conservadores das velhas tradições e também dos ricos emergentes como os Estados Unidos que apesar de seu fantástico progresso económico e tecnológico não tinha uma população culturalmente bem informada já que suas preocupações estavam voltadas únicas e exclusivamente para seus próprios interesses, o resto lhes era irrelevante já que a América se lhes bastava e pronto". (continua) Luís Américo Lisboa Júnior (Junho de 2005)
o
CASO VERÍDICO E HILARIANTE
Beja,5 de Fevereiro 2006.
Peço deferimento
Maria José Pau.
Em resposta, recebeu a seguinte mensagem:
Cara Senhora Pau:
Sobre a sua solicitação da remoção do Pau, gostaríamos de lhe dizer que a nova legislação permite a remoção do Pau, mas o processo é complicado e moroso. Se o Pau tiver sido adquirido após o casamento, a remoção é mais fácil, pois, afinal de contas, ninguém é obrigado a usar o Pau do cônjuge se não quiser. Se o Pau for do seu pai, torna-se mais difícil, pois o Pau a que nos referimos é de família e tem sido utilizado há várias gerações. Se a senhora tiver irmãos ou irmãs, a remoção do Pau torná-la-ia diferente do resto da família.
Cortar o Pau do seu pai pode ser algo muito desagradável para ele. Outro senão está no facto do seu nome conter apenas nomes próprios, e poderá ficar esquisito, caso não haja nada para colocar no lugar do Pau. Isto sem mencionar que as pessoas estranharão muito ao saber que a senhora não possui mais o Pau do seu marido. Uma opção viável seria a troca da ordem dos nomes.
Se a senhora colocar o Pau na frente da Maria e atrás do José, o Pau pode ser escondido, pois poderia assinar o seu nome como Maria P.José. A nossa opinião é a de que o preconceito contra este nome já acabou há muito tempo e visto que a senhora já usou o Pau do seu marido por tanto tempo, não custa nada usá-lo um pouco mais.
Eu mesmo possuo Pau, sempre o usei e muito poucas vezes o Pau me causou embaraços.
Atenciosamente,
Bernardo Romeu Pau Grosso
Registo Civil de Beja
GABRIELA
Lei antiga, vinda dos primeiros tempos do cacau, não estava no papel nem constava do Código; era no entanto das mais válidas das leis, e o júri, reunido para decidir da sorte do matador, a confirmava unanimemente cada vez como a impô-la sobre a lei escrita mandando condenar quem matava seu semelhante.
Apesar da recente concorrência dos três cinemas locais, dos bailes e chás-dançantes do Clube Progresso, das partidas de futebol nas tardes de Domingo e das conferências – literatos da Bahia e até mesmo do Rio, arribando a Ilhéus na caça de uns mil-réis na terra inculta e rica – a sessão do júri, duas vezes por ano, era ainda a diversão mais animada e concorrida da cidade.
Existiam advogados famosos, como o Dr. Ezequiel Prado e o Dr. Maurício Caíres, o rábula João Peixoto, de retumbante voz, oradores aplaudidos, retóricos eminentes, fazendo a assistência fremir e chorar.
O Dr. Maurício Caíres, homem muito da igreja e dos padres, presidente da confraria de São Jorge, era especialista em citações da Bíblia. Fora seminarista antes de entrar para a Faculdade, gostava de frases em latim, havia quem o considerasse tão erudito quanto o Doutor.
No júri, os duelos oratórios duravam horas e horas, com réplicas e tréplicas, atravessavam pelas madrugadas, eram os acontecimentos culturais mais importantes de Ilhéus.
Faziam-se apostas volumosas na absolvição ou na condenação, a gente de Ilhéus gostava de jogar e tudo lhe servia de pretexto. Noutras ocasiões, agora mais raras, o resultado do júri dava lugar a tiroteios e novas mortes.
O coronel Pedro Brandão, por exemplo, fora assassinado na escadaria da Intendência, ao ser absolvido pelo júri. O filho de Chico Martins, a quem o coronel e seus jagunços haviam morto barbaramente, fez justiça com as próprias mãos.
Nenhuma aposta se aceitava porém, quando o júri se reunia para decidir sobre crime de morte em razão de adultério: sabiam todos ser a absolvição unânime do marido ultrajado, a acusação e a defesa, e também na expectativa de detalhes escabrosos e picarescos, escapando dos autos ou da falação dos advogados.
Condenação de assassínio, isso jamais!, era coisa contra a lei da terra mandado lavar com sangue a honra manchada do marido.
Comentava-se e discutia-se apaixonadamente a tragédia de Sinhàzinha e do dentista. Divergiam as versões do sucedido, opunham-se detalhes, mas numa coisa todos concordavam: em dar razão ao coronel, em louvar-lhe o gesto de macho.
Das Meias Pretas
Crescia o movimento no bar Vesúvio em dia de feira, mas naquela tarde de morte violenta havia uma frequência absolutamente anormal, uma animação quase festiva.
Além dos fregueses habituais do aperitivo, do pessoal vindo para a feira, inúmeros outros apareciam para colher e comentar novidades. Iam até à praia espiar a casa do dentista, ancoravam no bar:
- Quem havia de dizer! Não saía da igreja…
Nacib, atarefado de mesa em mesa, activava os empregados, calculando mentalmente os lucros. Um crimezinho assim, todos os dias, e logo poderia ele comprar as sonhadas roças de cacau.
INFORMAÇÕES ADICIONAIS À
"EXISTE O INFERNO?" (6)
Limbo foi um lugar idealizado nos séculos medievais, como um produto "lógico" que resultou da doutrina do pecado original: era o lugar onde iam parar as crianças não baptizadas que por terem herdado esse primeiro pecado original, não podiam entrar o céu, mas não tendo ainda raciocínio também não havia possibilidades de pecar para justificar a ida para o inferno.
No Catecismo de Pio X (prescritos em 1905 e em vigor durante a maior parte do século XX) afirmava-se que naquele lugar as crianças "não têm Deus, mas não sofrem." Limbo já não apareceu no novo Catecismo Católico de 1992.
Esta invenção teológica provocou durante séculos uma enorme dor aos pais e às mães que viram as seus filhos pequenos morrem de fome, de doenças ou qualquer outro motivo, sem terem tido tempo de aplicar o rito do baptismo. Naturalmente, o medo de que suas crianças caíssem no limbo e não voltassem a vê-los era um meio de coerção para que as famílias decidissem baptizá-los rapidamente.
quarta-feira, abril 04, 2012
VÍDEO
Esta condução prece de " loucos"... ouve-se, ao lado do piloto, a voz do "pendura" dando as instruções sobre a estrada e finalmente o acidente com um pau a atravessar o para-brisas mas... era dia de sorte...
INFORMAÇÕES COMPLENTARES
“O INFERNO EXISTE?” (5)
PORTUGAL
Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse oitocentos.
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de África só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais e nunca mais voltasse?
Quase chego a pensar que é tudo mentira, que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente.
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional (que os meus egrégios avós me perdoem).
Ontem estive a jogar póquer com o velho do Restelo.
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electrochoques e está a recuperar, à parte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do Império, mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem conseguir encontrar uma pétala que fosse das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Se tivesse dinheiro comprava um Império e dava-to
Juro que era capaz de fazer isso só para te ver sorrir
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal
Estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete,
Salazar estava no poder, nada de ressentimentos
O meu irmão esteve na guerra, tenho amigos que emigraram, nada de ressentimentos
Um dia bebi vinagre, nada de ressentimentos
Portugal
Depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas a nado na piscina municipal de Braga ia agora propor-te um projecto eminentemente nacional
Que fossemos todos a Ceuta à procura do olho que Camões lá deixou
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
Gostava de te beijar muito apaixonadamente na boca
Jorge Sousa de Braga
GABRIELA
CRAVO
E
CANELA
Sobretudo nos bares, cuja frequência crescera apenas a notícia circulara. Especialmente a do bar do Vesúvio, situado nas proximidades do local da tragédia. Em frente à casa do dentista, pequeno bangaló na praia, juntavam-se curiosos.
Um soldado da polícia postado à porta dava explicações. Cercavam a empregada apalermada, queriam detalhes. Moças do Colégio das Freiras numa excitação álacre, exibiam-se no passeio da praia, cochichavam-se segredos.
O professor Josué, aproveitara-se para aproximar-se de Malvina, relembrava para o grupo de moças amores célebres, Romeu e Julieta, Heloísa e Abelardo, Dirceu e Marília.
E toda aquela gente terminava no bar de Nacib, enchendo as mesas, comentando e discutindo. Unanimemente davam razão ao fazendeiro, não se elevava a voz – nem mesmo de mulher em átrio de igreja – para defender a pobre e formosa Sinhàzinha.
Mais uma vez o coronel Jesuíno demonstrara ser homem de fibra, decidido, corajoso, íntegro, como aliás à sociedade o provara durante a conquista da terra. Segundo recordavam, muitas cruzes no cemitério e na beira das estradas deviam-se aos seus jagunços, cuja fama não fora esquecida.
Não só utilizar jagunços, mas os comandara também em ocasiões famosas, como aquele encontro com os homens do finado major Fortunato Pereira na encruzilhada da Boa Morte, nos perigosos caminhos de Ferradas. Era homem sem medo e obstinado.
Esse Jesuíno Mendonça, de uns famigerados Mendonças, de Alagoas, chegara a Ilhéus ainda jovem quando da luta pelas terras. Desbravara selvas e plantara roças, disputando a tiro a posse do solo, suas propriedades cresceram e seu nome fez-se respeitado.
Casara com Sinhàzinha Guedes, formosura local, de antiga família Ilheense, órfã de pai e herdeira de um coqueiral para as bandas de Olivença. Quase vinte anos mais moça do que o marido, bonitona, freguesa assídua das lojas de fazendas e sapatos, principal organizadora das festas da Igreja de São Sebastião, aparentada de longe com o Doutor, passando longos períodos na fazenda, Sinhàzinha jamais dera que falar, em todos aqueles anos de casada, aos muitos maledicentes da cidade.
De súbito, naquele dia de sol esplêndido, na hora calma da sesta, o coronel Jesuíno Mendonça descarregara seu revólver na esposa e no amante, emocionando a cidade, trazendo-a, mais uma vez para o remoto clima de sangue, fazendo com que o próprio Nacib esquecesse seu problema tão grave de cozinheira.
Também o Capitão e o Doutor esqueceram suas preocupações políticas e o próprio coronel Ramiro Bastos, informado do infortúnio, deixou de pensar em Mundinho Falcão. A notícia correra rápida como relâmpago e cresceram o respeito e a admiração que já cercavam a figura magra e um tanto sombria do fazendeiro.
Porque assim era em Ilhéus: honra de marido enganado só com sangue podia ser lavada.
Assim era. Numa região recém-chegada de barulhos e lutas frequentes, quando as estradas para as tropas de burro e mesmo para os caminhões abriam-se sobre picadas feitas por jagunços, marcadas pelas cruzes dos caídos nas tocaias, onde a vida humana possuía pouco valor, não se conhecia outra lei para traição de esposa além da morte violenta.
terça-feira, abril 03, 2012
VAMOS SORRIR…
- Doutor, quando era solteira tive que abortar várias vezes. Agora, que sou casada não consigo engravidar.
- O seu caso, minha senhora, é muito comum: simplesmente não se reproduz em cativeiro…
- Doutor, tenho tendências suicidas. O que devo fazer?
- Em primeiro lugar paga a consulta.
- Doutor, sou a mulher do Zé, o que sofreu o acidente. Como é que ele está?
- Bem, da cintura para baixo ele não teve sequer um arranhão.
- Que bom, doutor, e da cintura para cima?
- Não sei, essa parte ainda não trouxeram.
Após a cirurgia:
- Doutor, entendo que vistam de branco mas para quê essa luz tão forte?
- Meu filho, eu sou o São Pedro.
No psiquiatra:
- Doutor, tenho o complexo de que sou feia.
- Qual complexo, qual quê… tem toda a razão.
Doutor, vim aqui para que o senhor me retire os dentes.
- Mas minha senhora, eu não sou dentista, sou gastroenterologista… e a senhora não tem dentes nenhuns.
- É claro, engoli-os todos.
GABRIELA
Nacib interessou-se:
- Mulheres também?
O professor quis saber a razão daquele interesse:
- Você está assim tão falto de mulher?
- Não brinca. Minha cozinheira foi-se embora, tou procurando outra. Às vezes no meio desses retirantes vem alguma…
- Tinha umas quantas mulheres, sim. Um horror essa gente vestida de farrapos, suja, parecendo empestados…
- Mais tarde vou lá ver se encontro alguma…
Malvina não aparecia no portão, Josué mostrava-se impaciente. Nacib informou:
- A pequena está na avenida, na praia. Passaram há pouco, ela e umas colegas…
Josué pagou, levantou-se. Nacib ficou na porta do bar, olhando-o ir; devia ser bom sentir-se assim apaixonado. Mesmo quando a moça fazia pouco caso, mais cobiçada ainda. Aquilo terminaria em casamento, mais dia menos dia…
Glória surgia na janela, os olhos de Nacib tornavam-se cúpidos. Se um dia o coronel a largasse haveria corrida nunca vista em Ilhéus. Nem assim chegaria para seu bico, os coronéis ricos não deixariam…
Os tabuleiros dos doces e salgados tinham chegado, os fregueses do aperitivo ficaram contentes. Só que ele, Nacib, não poderia continuar a pagar aquela fortuna às irmãs Dos Reis. Quando o movimento decrescesse, na hora do jantar, iria ao acampamento dos retirantes.
Quem sabe não teria sorte, encontraria uma cozinheira?...
De súbito a calma da tarde foi cortada por gritos, balbúrdia de muita gente falando. O Capitão parou a jogada, a pedra de dama na mão. Nacib deu um passo à frente, o clamor aumentava.
O negrinho Tuísca que mercava os doces feitos pelas irmãs Dos Reis, apareceu correndo, vindo da avenida, o tabuleiro equilibrado na cabeça. Gritava algo, não conseguiam ouvir.
O Capitão e o Doutor voltaram-se curiosos, fregueses levantaram-se. Nacib viu Josué e com ele várias pessoas movimentando-se apressadas na avenida. Finalmente, o negrinho Tuísca fez-se ouvir:
- O coronel Jesuíno matou Sinhàzinha e o Doutor Osmundo. Tá tudo lá no meio do sangue…
O Capitão empurrou a mesa do jogo, saíu quase correndo. O Doutor o acompanhou. Nacib, após um momento de hesitação, apressou o passo para alcança-los.
Da Lei Cruel
A notícia do crime espalhara-se num abrir e fechar de olhos. Do morro do União ao morro da Conquista, nas casas elegantes da praia e nos casebres da Ilha das Cobras, no Pontal e no Malhado, nas residências familiares e nas casas de mulheres públicas, comentava-se o acontecido. Ao demais era dia de feira, a cidade repleta de gente vinda do interior dos povoados e das roças, para vender e comprar. Nas lojas, nos armazéns de secos e molhados, nas farmácias e nos consultórios médicos, nos escritórios de advogados, nas casas exportadoras de cacau, na Matriz de São Jorge e na igreja de São Sebastião, não havia outro assunto.
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
“O INFERNO EXISTE?” (4)
Até a proclamação do dogma permaneceram vigentes algumas discussões teológicas: alguns Padres da Igreja da corrente chamada "misericordista", como Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa, no século IV, sustentavam que o fogo do inferno era apenas simbólico e que a duração do castigo não era eterna.
A eles se opunham os "rigoristas” tendo à cabeça Agostinho de Hipona, que argumentava que o fogo era verdadeiro e a punição era eterna. Depois de Paulo, Agostinho é o teólogo mais influente na teologia católica e sua influência estende-se até hoje.
O Concílio de Letrão proclamou finalmente a crença no inferno como dogma obrigatório da fé. Dois séculos mais tarde, o Papa Bento XII (1334-1342), deu lugar a esta doutrina na Constituição "Benedictus Deus" (1336):
- “De acordo com a comum ordenação de Deus, as almas daqueles que morrem em pecado mortal, baixam imediatamente após morte, ao inferno, onde são atormentados com suplícios infernais. Em 1442 o Concílio de Florença, declarou que quem estivesse voluntariamente fora da igreja seria réu deste temível fogo eterno. A doutrina do inferno aparece no Catecismo actual da Igreja Católica nos números 1033-1037.
segunda-feira, abril 02, 2012
Luiz Américo Lisboa Junior.Itabuna, 29 de junho de 2005.
POEMA DE AMOR EM TEMPOS DE CRISE FINANCEIRA
Como pode um investimento tão fiável
Garantir este rendimento crescente, numa
diária distribuição de beijos e outras mais-
- valias, ainda por cima livres de impostos?
Embora confiasse na tua competência
Para criar valor, confesso que não esperava
Tanto quando decidi aplicar nos teus títulos
Os meus parcos activos emocionais.
O mais estranho, no mundo actual, é ser este
Um negócio sem perdedores, aparentemente
Imune ao nervosismo das tuas acções
Ou às flutuações do meu comércio libidinal.
O meu único receio é que despertemos
A inveja dos deuses, no Olimpo de Bruxelas,
e que o Mercado, o monstruoso Titã, decida
baixar para lixo o rating da nossa relação,
deixando-nos sem crédito na praça romanesca
e em default o coração. Mas não sejamos
pessimistas. Aliás ambos sabemos que Cupido
nos ampara com sua mão invisível. E mesmo
que entrássemos ambos em depressão, tenho
a certeza que o Estado português nos daria
todo o apoio, concordando que um amor como
este é simplesmente demasiado grande para falir.
José Miguel Silva
(Semanário Expresso)
GABRIELA
- Lá está a peste de olho no rapaz…
As solteironas, os longos vestidos negros fechados no pescoço, negros xales aos ombros, pareciam aves nocturnas paradas no átrio da pequena igreja. Viam o movimento da cabeça de Glória acompanhando Josué no passeio da casa do coronel Melk.
- Ele é um moço direito. Só tem olhos para Malvina.
- Vou fazer uma promessa a São Sebastião – dizia a roliça Quinquina – para Malvina gostar dele. Trago uma vela das grandes.
- E eu trago outra… – reforçava a franzina Florzinha, em tudo solidária com a irmã.
Na janela, glória suspirava, quase um gemido. Ânsia, tristeza, indignação, misturavam-se nesse suspiro a morrer na praça.
De indignação estava cheio seu peito, contra os homens em geral. Eram covardes e hipócritas. Quando, nas horas de mormaço do meio da tarde, a praça vazia, as janelas das casas de família fechadas, ao passarem sozinhos ante a janela aberta de Glória, sorriam para ela, suplicavam-lhe um olhar, desejavam-lhe boa tarde com visível emoção.
Mas bastava que houvesse alguém na praça, uma única solteirona que fosse, ou que viessem acompanhados, para que lhe virassem a cara; olhassem para outro lado, acintosamente, como se lhes repugnasse vê-la na janela, os altos seios saltando da bordada blusa de cambraia.
Vestiam o rosto de ofendida pudicícia mesmo os que antes lhe dito galanteios ao passar sozinhos. Glória gostaria de dar-lhes com a janela na cara, mas, ah! Não tinha forças para fazê-lo, aquela chispa de desejo nos olhos dos homens era tudo quanto possuía na sua solidão. Demasiado pouco para a sua sede e a sua fome. Mas, se lhes batesse com a janela, perderia até mesmo aqueles sorrisos, aqueles olhares cínicos, aquelas medrosas e fugidias palavras.
Não havia mulher casada em Ilhéus, onde mulher casada vivia no interior de suas casas, cuidando do lar, tão bem guardada e inacessível como aquela rapariga. O coronel Coreolano não era homem para brincadeiras.
Tanto medo lhe tinham que não se animavam sequer a cumprimentar a pobre Glória. Só Josué era diferente. Vinte vezes cada tarde seu olhar se acendia ante o portão de Malvina. Glória sabia da paixão do professor e também ela antipatizava com moça estudante, indiferente a tanto amor, tratava-a de enjoada e tola.
Sabia da paixão de Josué, mas nem por isso deixava de sorrir-lhe o mesmo sorriso de convite e de promessa e era-lhe grata porque ele, jamais, mesmo quando Malvina estava no portão da casa nova sob o jasmineiro em flor, lhe virava o rosto. Ah, se ele tivesse um pouco mais de coragem e empurrasse no meio da noite, a porta da rua que Glória deixava aberta, pois, quem sabe?, de repente… Então ela o faria esquecer a moça orgulhosa.
Josué não se atrevia a empurrar a maciça porta da rua. Ninguém se atrevia. Medo da língua afiada das solteironas, da gente da cidade a falar mal da vida alheia, medo do escândalo, mas medo sobretudo do coronel Coriolano Ribeiro. Todos sabiam da história de Juca e de Chiquinha.
Naquele dia, Josué viera bem mais cedo, na hora da sesta na praça deserta. A frequência no bar reduzia-se a alguns caixeiros-viajantes, ao Doutor e ao Capitão disputando uma partida de damas. Enoch para festejar a equiparação do colégio, dera a tarde de folga aos alunos. O professor andara pela feira, assistira à chegada de um numeroso grupo de retirantes ao “mercado de escravos”, demorara-se na Papelaria Modelo, tomava agora uma mistura no bar, conversando com Nacib:
- Uma quantidade de retirantes. A seca está comendo o sertão.
INFORMAÇÔES ADICIONAIS
Uma das reconstruções mais famosos destes sermões terroristas está no romance "Retrato do Artista" do irlandês James Joyce. O protagonista, Stephen Dedalus, com a sua consciência "contaminada pelo pecado," escuta com terror um longo sermão dos seus professores jesuítas. Aqui está um trecho do sermão, como muitos outros ouvidos em muitos países e por muitas pessoas:
- “O nosso fogo terrestre, não importa o quão violento ou prolongado for, sempre tem um alcance limitado. Ao contrário, o fogo do inferno não tem fronteiras, nem fundo. Está escrito que o próprio diabo, quando um soldado lhe perguntou foi forçado a confessar que se uma montanha fosse lançada no oceano ardente do inferno, seria consumida num instante como um pedaço de cera. Mas esse fogo terrível não afectará apenas os corpos dos condenados, mas cada alma será o próprio inferno, com o fogo ilimitado nos seus centros vitais. Oh, quão terrível é o destino desses seres infelizes! Ferve-lhes o sangue nas veias, cérebro, peito, coração e crânio, ficam tão quentes ao ponto de explodirem, os intestinos como uma massa incandescente, os olhos flamejantes delicados como esferas derretidas ...
Entre as pinturas que representam este tormento, está, entre muitas outras, “O Inferno", do padre jesuíta Hernando de la Cruz (1592-1646), que se conserva na igreja jesuíta, em Quito, Equador, quadro, perante o qual desfilaram milhares de crianças e adultos conduzidas pelos seus professores religiosos para enfrentarem a imagem de terror daquele lugar horrível.
domingo, abril 01, 2012
HOJE É
Haverá algum recanto no cérebro, a mais intrincada, complexa e misteriosa máquina da natureza, que funcione como uma espécie de arquivo morto de sensações e experiências da nossa espécie que marcaram as vidas de muitas gerações que nos antecederam e que por isso deixaram marcas que não desapareceram completamente?
É sabido já que através da comparação dos registos do ADN se pode saber hoje que duas pessoas de raças diferentes tiveram um progenitor comum muitos milhares de anos atrás o que significa que, em termos puramente biológicos, o passado mais remoto se liga ao presente através de um fio condutor inserido no ADN das pessoas.
E a pergunta que faço é se comportamentos de vida, importantes em termos de sobrevivência, repetidos durante muitas e muitas gerações que nos precederam não poderão ter deixado alguma marca num local recôndito do nosso cérebro.
Tive uma experiência interessante há muitos anos atrás, que creio numa outra data já aqui contei mas que volto a recordar, quando, no meio da savana africana, em silêncio, de pé, sobre o capôt de um jeep, olhava à minha volta a perder de vista, o capim, as árvores esparsas e sentia no rosto a ligeira brisa que perpassava por entre elas.
De repente, apoderou-se de mim uma sensação de pânico, mais que simples medo:
- … “estava só, perdido dos meus companheiros de percurso, indefeso, à mercê das feras, ninguém à minha beira" - embora os meus camaradas, num nível mais baixo, estivessem lá todos”.
Não sei quantos segundos, por certo fracções, durou aquela estranha sensação, mas com um impacto tão forte que para fugir a ela quase me atirei do capôt do jeep para o chão para me reconfortar de imediato com o som delicioso do motor do jeep que rapidamente pus a trabalhar e me reconduziu ao presente numa autêntica fuga daquele passado longínquo.
Quantos antepassados meus, naquele cenário onde tudo começou para a humanidade e onde pouco ou nada mudou até ao momento, não teriam vivido o drama de uma morte violenta nas garras e dentes de uma fera que bem poderia ser o tigre dentes de sabre, nosso habitual carrasco, especialmente quando nos apanhava afastados do grupo a que pertencíamos por laços de parentesco?
E por que não, momentos terríveis de pânico infelizmente vulgares para eles, vividos ao longo de tantas gerações e por tantos dos nossos antepassados, trazidos hoje num flash de uma pequena lâmpada que intempestivamente se acendeu no nosso cérebro numa situação muito especial e de rara inspiração?
Lembrei-me, novamente, desta estranha experiência com quase 50 anos quando, há poucos anos atrás, tive oportunidade de visitar, no sul da Turquia, as ruínas da cidade de Epheso.
Epheso foi a primeira cidade da Ásia Menor nos tempos antigos, ainda anteriores a Cristo e a 4ª do Império Romano em dimensão e importância. Meio milhão de habitantes podendo ser considerada berço da nossa “civilização”, talvez mais que qualquer outro local.
Ocupada pelos Gregos desde 1200 AC até 1923, dali irradiou a religião de Cristo e o pensamento científico, ali viveram as primeiras comunidades secretas de cristãos e em 400 DC teve lugar o 3º Concílio Ecuménico.
Dispunha, ao tempo, da 3ª maior biblioteca do mundo, depois de Alexandria e Pérgamo, com 12000 livros. A fachada principal de dois andares e 16 colunas repartidas pelo piso térreo e 1º andar lá estão, com toda a dignidade, para as podermos admirar.
O seu teatro para 25000 pessoas permanece muito bem conservado e é utilizado para espectáculos musicais juntamente com o de Epidauros, na Grécia.
S. João viveu, morreu e escreveu ali o seu Evangelho, S. Paulo visitou a cidade por três vezes tendo estado aqui preso e o grande filósofo Heraclito, que pertencia a uma das famílias mais importantes da cidade, ele, que foi o autor da célebre frase de que “não se entra duas vezes no mesmo rio porque tudo se move excepto o próprio movimento e numa segunda vez as águas do rio já não são as mesmas e nós próprios também não”, como hoje sabemos pela constante renovação das células do corpo humano.
Acerca dele, conta Diógenes, que retirado do templo de Artémia divertia-se a jogar com as crianças quando, chamado à atenção pelos efésios lhes perguntou:
-“ De que vos admirais, perversos? Que é melhor: fazer isto ou administrar a República convosco?”
Tales, um dos sete sábios da Grécia Antiga, era de Mileto, cidade próxima de Epheso, a sul, e com ela constituíram dois berços do pensamento filosófico.
Tales, era igualmente, para alem de filósofo, o primeiro que se conhece no Ocidente, fundador da Escola Jónica, matemático e astrónomo tendo sido a primeira pessoa que mediu o tempo com precisão utilizando um relógio solar denominado “gnômon”e previu, também pela primeira vez, um eclipse solar no ano de 585 AC e que ocorreu, na realidade, em 28 de Maio desse ano e surpreendeu o Faraó do Egipto calculando a altura da pirâmide de Kuéope a partir da sombra projectada por uma vara espetada no chão.
Tales era mais velho que Heraclito que nasceu em 540 AC e ainda era menino quando o primeiro faleceu o que permitiu que o seu pensamento sobre o dinamismo das coisas fosse retomado e problematizado por este último.
Como se diria hoje, quase tudo o que foi gente importante daquela época, imperadores, sábios, filósofos, apóstolos, políticos, viveu ou passou por Epheso e a marca que lá deixaram é a marca que nós hoje ainda transportamos na nossa sociedade.
A própria ideia da democracia é de Heráclito, tal como o nosso pensamento de carácter científico e as convicções religiosas relacionadas com o Cristianismo.
Mas a importância desta cidade e as imagens magníficas das suas ruínas podem facilmente ser observadas na Internet e nos livros mas para nos sentirmos, através de um pequeno exercício de imaginação, a passear ao fim da tarde, ao lado destas célebres figuras, vestindo como elas as túnicas da época acompanhados da família e dos escravos, é preciso ir lá e pisar as lajes, hoje polidas e desgastadas da avenida por onde eles passavam.
Mais uma sensação estranha mas esta agradável, de reencontro com o passado, um passado recente na história da humanidade, importante e decisivo para aquilo que hoje somos do ponto de vista cultural, político e religioso.
Apesar da crise, se puderem, é o melhor presente que podem oferecer a vós próprios: visitar a cidade de Epheso é visitar o “palco” onde começou a nossa civilização.