Memórias Futuras
Olhar o futuro pelo espelho retrovisor da história. Qual história? Que futuro?
sábado, julho 12, 2014
Gerard Joling - No More Bolero
Feche os olhos e sonhe, dance e sonhe e dance e ame. Dance e sonhe e dance a vida... dance, dance e dance.
É sempre assim...
Um miúdo vê um casal de cães montados um no outro, no meio da rua, e pergunta à avó:
-
O que é que eles "tão a fazer, vó?
A avó prefere uma explicação
provisória:
- É o seguinte, Zequinha: como o cãozinho de trás está com a
patinha magoada, o cãozinho da frente deixou-o apoiar-se nas costas para
andar.
E o Zequinha, indignado:
- É sempre assim! A gente ajuda os
outros e ainda leva no cu.
Comandante Vasco Moscoso, capitão de longo-curso? |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Último Episódio Nº 130
Naquela hora já o telégrafo nacional e o
cabo submarino transmitiam, para o país inteiro e para os cinco continentes, a
notícia do imenso cataclismo e do génio do Comandante Vasco Moscoso de Aragão,
único a prever a tempestade e a salvar o seu navio.
Telegramas publicados em
manchetes nos jornais da Bahia, durante dias seguidos, avidamente lidos em
Periperi, decorados por Zéqui nha
Curvelo.
Inclusive os que contavam a homenagem prestada ao invencível capitão
de longo curso, pela Companhia Costeira: emocionante festa a bordo do Ita por
ele salvo e no qual regressava a Salvador.
Foi-lhe entregue um diploma
recordando o feito e comemorativa medalha de ouro de lei. Da ponte de comando
ele fitava o mar: de crista levantada, modesto, ele sorria.
Da moral da história e da moral corrente aqui
aporto ao fim do meu trabalho, desta pesqui sa
em tão controvertida história. Que posso acrescentar?
Notícias da chegada do
comandante ao cais da Bahia, com banda de música a esperá-lo, representante do
Governador, o Capitão-dos-Portos e Américo Antunes em delirante euforia?
Com ar
dos seus retratos nos jornais, do discurso que foi obrigado a pronunciar no
rádio, ainda a bordo?
De seu triunfal desembarque em Periperi, no trem das
duas, sob foguetório e vivas, levado nos ombros dos amigos até a casa de
janelas verdes sobre o mar?
Os adversários da véspera eram agora seus mais
entusiastas admiradores, menos Chico Pacheco, que preferira mudar-se; não
cabiam ali, ao mesmo tempo, ele com seu processo e o comandante com sua glória.
Dizer da emoção de Zequi nha Curvelo
ao receber o cinzeiro com a foto do Ita gravada na cerâmica? Das perguntas que
lhe fizeram, atropeladas? Das exigências para que contasse tudo, detalhe por
detalhe, sem esquecer nenhum?
A conversa, à noite, na grande sala do
telescópio, quando recordou Clotilde? Foi um momento de lirismo:
- Tão bonita ... E com tanto rapaz a
bordo, foi olhar para mim, tomada de paixão... Não tinha mais de vinte
anos, eu dizia-lhe Clô ao luar, no tombadilho, tinha os cabelos escorridos e a
pele cobreada, mameluca do Amazonas...
Veio me tirar para dançar com ela,
imaginem. Apareceu no cais para me dizer adeus na hora da partida.
Como vêem, já novamente torna-se difícil
distinguir a verdade, despi-la dos véus da fantasia. Afinal, a quem amara o
comandante, a quem se declarara na noite da grande lua, na coberta? A Clotilde,
a Grande Baqueana, madura e com chiliques, ou à agreste e impudica Moema, cuja
mão amparara seu braço na hora difícil, a mameluca com urgência de chegar a seu
dramático destino?
Quanto a mim, não sei e desisto de saber.
Uma coisa parece-me certa, no entanto, e
digna de registo: se o destino ficou ao lado do comandante e o favoreceu, não
deve ser esquecida nessa ajuda a ruptura de seu noivado com Clotilde.
Já
imaginaram a Grande Baqueana em Periperi, a infernar a vida do subúrbio, a
tocar ao piano árias de óperas e sonatas, a fazer da gloriosa velhice do
capitão de longo curso um mísero dia-a-dia de pequenas brigas, limitações,
chiliques, calundus?
Não teria vivido ele, honrado e feliz, os oitenta e dois
anos que viveu, se concretizasse noivado e casamento, a desgraçada ideia de
trazê-la a reboque.
Assim, nada mais tenho a contar, -minha
tarefa está finda. vou enviar este trabalho - custou-me esforço e sofrimento -
ao Júri nomeado pelo director do Arqui vo
Público. Se obtiver o prémio, comprarei um vestido para Dondoca e um vaso onde
colocar flores; está fazendo falta um troço desses na saleta clara da casinha
do Beco das Três Borboletas.
Não se espantem e permitam que lhes
relate os últimos acontecimentos nessa frente da minha batalha pela vida. O
Meritíssimo veio às boas, vivemos os três agora em perfeito entendimento e em paz. Aconteceu ter
dona Ernestina, digna e gorda esposa do ilustre luminar, descoberto (carta
anônima, com certeza) aquela nocturna ida do Dr. Siqueira à casa de Dondoca.
Não lhe salvaram os óculos negros e o chapéu desabado. O Zepelim entrou em fúria,
parecia a tempestade de Belém. Não restou ao juiz aposentado outra solução
senão mentir. Fora àquela casa de moral suspeita, é verdade. Mas o fizera para
cumprir um dever e ajudar um amigo. O dever de evitar um escândalo em Periperi;
o amigo a ajudar era este modesto historiador provinciano.
Não sabia ela,
Ernestina, que o pai dessa lastimável rapariga, Pedro Torresmo, jurara invadir
a casa onde a filha e o amante coabitam? Ao ter notícia dessas ameaças, e inqui eto pela vida e reputação do rapaz, ali fora,
forçando sua natureza e seus princípios, para avisá-lo. Nobre atitude, dela não
se envergonhava.
Mas o Zepelim exigiu provas e foi
obrigado o Meritíssimo a rastejar a meus pés, pedir-me desculpas, suplicar-me
que voltasse a dividir com ele o leito e os dengues de Dondoca, assumindo eu,
no entanto, perante a agitada matrona sua esposa, a responsabilidade inteira da
mulata.
Aceitei, para servi-lo, como lhe fiz ver, sem deixar transparecer minha
alegria, a festa a irromper pelo meu peito. Pois já me encontrava quase
disposto a cair nos braços da sensitiva Baqueana, aquela maduríssima viúva e
veranista de quem tracei o perfil em páginas anteriores. Tão necessitado
andava. Mas foi nos braços de Dondoca que pude minha fome saciar.
Desde então corre tudo no melhor dos
mundos, somos três almas o Meritíssimo, Dondoca e eu, a conversar e a rir, a
levar essa vida para a frente, enquanto nos permitem os estadistas, a se
ameaçarem com foguetes e bombas de hidrogénio.
Um dia, por descuido, uma bomba
explode e nós pagaremos as custas do processo.
Voltando, porém, ao comandante e às suas
aventuras, objecto único, repito, destas pálidas letras, confesso chegar ao fim
de sua história imerso em confusão e dúvida.
Afinal, digam-me os senhores com suas
luzes e sua experiência, onde está a verdade, a completa verdade? Qual a moral
a extrair desta história por vezes salafrária e chula? Está a verdade naqui lo que sucede todos os dias, nos quotidianos
acontecimentos, na mesqui nhez e
chatice da vida da imensa maioria dos homens ou reside a verdade no sonho que
nos é dado sonhar para fugir de nossa triste condição? Como se elevou o homem
em sua caminhada pelo mundo: através do dia-a-dia de misérias e futricas, ou
pelo livre sonho, sem fronteiras nem limitações? Quem levou Vasco da Gama e
Colombo ao convés das caravelas? Quem dirige as mãos dos sábios a mover as
alavancas na partida dos seputniques, criando novas estrelas e uma lua nova no
céu desse subúrbio do universo? Onde está a verdade, respondam-me por favor: na
pequena realidade de cada um ou no imenso sonho humano?
Quem a conduz pelo
mundo afora, iluminando o caminho do homem? O Meritíssimo Juiz ou o paupérrimo
poeta? Chico Pacheco, com sua integridade, ou o Comandante Vasco Moscoso de
Aragão, capitão de longo curso?
Rio, Janeiro de 1961.
FIM
NOTA - O sonho comanda o mundo... é o que nos diz Jorge Amado em mais esta bela história e eu dedico-lhe este lindo poema de António Gedeão que é o que parece estar mais a propósito...
Pedra FilosofalEles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
António Gedeão, in 'Movimento Perpétuo'
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
António Gedeão, in 'Movimento Perpétuo'
sexta-feira, julho 11, 2014
Muitos acabaram presos, acossados como bichos... |
Recordando
os
os
Pides.
A mente dos polícias da PIDE (Polícia de Investigação e Defesa do Estado), especialmente daqueles que já tinham atingido a categoria de inspectores, com provas dadas e vocação comprovada, como o da nossa história, era qualquer coisa que talvez os especialistas do foro psi
O mundo, para eles, era estreito e muito
concreto. O quadro de valores definia-se apenas pela fidelidade ao regime e o
ódio aos comunistas, e quando a revolução aconteceu em 1974 esse mundo desabou.
Apavorados, ficaram sem perceber nada do
que tinha acontecido. De espírito covarde como eram, alimentados por uma
autoridade e força que não era deles, ficaram vazios.
Fugir, esconder, foi a única reacção.
O “nosso” inspector, o único que
conheci, vivia na cidade da Beira, em Moçambique, com a mulher e duas filhas e,
aproveitando-se da lei, transferia mensalmente para Portugal uma pensão (de
valor máximo) para três familiares (pais e sogro, presumo) que declarou estarem
a seu cargo, no total de 11 contos de réis, mais ou menos correspondente ao seu
próprio ordenado de funcionário público...
A Autorização para fazer essa transferência
através do Banco de Moçambique, com a duração de seis meses, tinha-lhe sido
concedida pela delegação de Quelimane, cidade onde ele exercia funções antes de
ser transferido para a Beira (sinal de promoção…)
Quando aqui
chegou, e embora a Autorização de Transferência que estava na sua posse fosse
ainda válida por mais três meses, requereu de imediato uma nova Autorização de
Transferência.
Os Serviços da Delegação da Inspecção de
Crédito e Seguros da cidade da Beira, de que eu era responsável, indeferiram o
pedido com o argumento de que “o requerente estava na posse de uma Autorização
que lhe tinha sido concedida pela Delegação de Quelimane cuja validade só
terminaria dentro de três meses devendo, então, pedir a sua renovação por um
novo período de seis meses”.
Isto mesmo lhe foi comunicado num ofício que
eu próprio assinei na qualidade de Delegado da Inspecção e que caiu em cima da
secretária dele como uma autêntica bomba.
Que afronta, que ousadia, que temeridade,
que falta de respeito!... dizer “não” ao
senhor todo-poderoso Inspector da Pide?
A raiva, a ira, a incredulidade, deixaram-no
possesso, o sangue invadiu-lhe o rosto, os gestos desabridos, pega
imediatamente no telefone e quando me ouve, a sua voz em altos berros dispara
em todas as direcções.
Na rua onde os seus Serviços funcionavam
as pessoas ouvem com algum temor e param curiosas, os seus funcionários devem
ter-se escondido debaixo das secretárias e eu afastei o telefone do ouvido para
proteger o tímpano.
Fiquei em silêncio, não disse uma
palavra, apenas recordo algumas ameaças… “que ia participar de mim”, “que me
embrulhava numa folha de papel de 25 linhas”… e de mais não me lembro porque
deixei de o ouvir.
À
minha frente, um senhor que estava a atender, fitava-me com perplexidade sem
saber o que pensar. Quando pousei o auscultador, olhei-o e disse-lhe:
“desculpe, isto são ossos do ofício”.
Só uma mente completamente distorcida podia
ter um comportamento assim. Em que mundo aquele senhor vivia?
Como era possível reagir daquela maneira
a uma decisão de Serviços da Administração Pública que era obviamente legal
para além de que fazia todo o sentido?
Não percebia ele que atender o seu
pedido teria sido uma evidente irregularidade, uma infracção da lei?
Perguntei a mim próprio, muitas vezes,
porque reagiu aquele homem daquela maneira e naqueles termos e a resposta só
podia ser uma:
-
No exercício de uma autoridade baseada na violência arbitrária, prepotente, no
desrespeito total pelos direitos e dignidade dos seus concidadãos dos quais só
aceitava a obediência e o temor, perseguido por todos os fantasmas que
habitavam o seu espírito, aquele homem vivia no limiar da loucura.
Os tempos passaram. Nada mais aconteceu depois daquele
surrealista telefonema até que um dia, sem se fazer anunciar como era hábito
daquela gente, dei por mim, quando levantei a cabeça da secretária, com o
senhor inspector à minha frente no meu gabinete de trabalho.
Uma das prerrogativas daqueles “defensores do regime”
era, querendo, o de entrarem na casa das pessoas, nos locais de trabalho, em
qualquer lado, de surpresa, sem avisarem. Como polícias muito especiais que
eram, o factor surpresa, fora de qualquer processo de averiguação que o
justificasse, constituía uma espécie de “marca” identificadora da sua
autoridade e poder.
Com ar altivo, o peito cheio, não se sentou, olhava-me
de pé, de cima, em sinal de superioridade e de dominação… “estou aqui para lhe mostrar que não estou zangado… aqui tem – e acompanhou as palavras com os gestos –
dinheiro estrangeiro que foi apreendido, para fazer entrega dele no Banco de
Moçambique…” disse, enquanto colocava em cima da secretária um
maço de notas e saíu com o seu avantajado corpanzil numa retirada de estilo,
sempre para impressionar…
Os meses continuaram a passar e desembocaram na
Revolução do 25 de Abril em Portugal, com cravos distribuídos no Rossio,
coração de Lisboa, que os soldados enfiaram nos canos das espingardas em imagens
que correram mundo, no que foi a extrema humilhação para os Srs. Inspectores da
PIDE, zelozos defensores do regime.
Não tiveram oportunidade de mostrar a valentia e a
coragem de que se fizeram portadores durante tantos anos e acabaram presos,
perseguidos, muitos acossados como bichos pela população, mãos nas paredes,
pernas abertas, calças arriadas, cuecas à mostra… era a hora do reviralho!
Passava um pouco das 10 da manhã quando a notícia me
chegou, hora histórica para mim e para todos os portugueses aquela em que
souberam da revolução. A vida de todos os portugueses iria dar uma cambalhota, o
curso ia mudar mas ali, nas colónias, muito mais...
Fui até à Praça do Município onde era enorme o
entusiasmo. Faziam-se discursos, davam-se gritos à liberdade, muito
provavelmente por elementos de um núcleo de oposição ao regime de
Salazar/Caetano que vivia clandestinamente na cidade.
Encostei-me a uma coluna e observei o ambiente de
alegria e de vitória que se vivia na Praça e pensei, lembro-me bem de ter
pensado, que muitas daquelas pessoas, quase todas brancos, portugueses, não
tinham muitas razões para estarem alegres.
Era apenas o momento de euforia a que alguns, que
esperaram tantos anos, tinham direito. Aquela, no entanto, não era a terra
deles, era o local errado e o equívoco ia finalmente desfazer-se... O parto de
um novo país iria ser para todos muito doloroso…
Samora Machel disse: Portugal não nos deu a
independência, nós é que ganhámos a guerra!
Esta era a mensagem que ia ao encontro do orgulho dos
moçambicanos mas que escondia uma outra, implícita, lógica e perigosa: os
portugueses, colonialistas ou não, eram considerados “despojos” de guerra,
restava-lhes abandonar o território.
Para os moçambicanos ficou um país vazio de actividade
económica, palco para uma futura guerra civil, também conhecida como a guerra
dos Dezasseis Anos entre o Exército de Moçambique, da Frelimo, e a Renamo,
Movimento Político da Oposição a Samora Machel.
À tarde o telefone tocou. Era um amigo meu, antigo
colega do tempo do Liceu e da Faculdade, pessoa de confiança do regime que superintendia
numa empresa do Grupo Entreposto, de Champalimaud económico importante daquela
região.
Trabalhava no edifício contíguo ao meu e pelo grau de
confiança e amizade que tínhamos pedia-me que fizesse um favor ao Sr. Inspector
que estava ali ao pé dele, em desespero, porque precisava com rapidez de uma
Autorização de Transferência para mandar para Portugal a mulher e as filhas.
- “Diz ao Sr.
inspector que eu trabalho exactamente no mesmo local que ele conhece e se
pretende alguma coisa de mim só tem que vir até cá… não precisa de te
incomodar…”
Passados poucos minutos, o senhor que tinha sido até
ao dia anterior o todo-poderoso inspector da Pide da cidade da Beira, entrava
no meu gabinete, cabeça baixa, peito para dentro e ali ficou até eu o mandar
sentar, em silêncio, incapaz de me olhar nos olhos, não fosse qualquer gesto ou
palavra desagradar-me… era a segurança da família que estava em causa e ele não
podia correr riscos.
- “Sr.
Inspector - disse-lhe eu – se me viesse fazer este pedido há dois dias atrás
dir-lhe-ia para se dirigir aos balcões, preencher o impresso e aguardar que a
Autorização corresse os seus trâmites no Serviço até estar despachada para lhe
ser entregue, mas o senhor, neste momento, é um homem derrotado a atravessar o
pior momento da sua vida, é uma pessoa frágil e eu vou atender de imediato o
seu pedido”.
Chamei uma funcionária e dentro de minutos ele
abandonava a Delegação com o papel pretendido sem que eu me lembre de ter
ouvido um obrigado… mas talvez o tenha dito… baixinho… já passaram tantos anos…
uma vida.
No outro dia viajou para Lourenço Marques, hoje
Maputo, preso, como todos os Pides que exerciam funções em Moçambique.
Numa contra-revolução em 7 de Setembro, tentativa
frustrada de interromper o processo de independência em curso e reconduzir
novamente o poder aos brancos numa solução tipo Ian Smith, como na vizinha
Rodésia, fugiram da cadeia e refugiaram-se na África do Sul onde muitos se
exilaram porque Portugal, naquela altura, não era também para eles uma terra
recomendável…
Depois, com os anos, tudo acabou por esquecer… o tempo
tudo apaga… os acontecimentos seguiram o seu rumo de forma inexorável, Portugal
“digeriu”, como por encanto, meio milhão de retornados regressados à
“trouxe-mouxe” ao ponto de partida e que, paradoxalmente, acabaram por ser eles
um motor de desenvolvimento para um país adormecido pela guerra e a ditadura.
Só eu não apaguei da minha memória esta figura bizarra
do Sr. Inspector da Pide que se cruzou comigo na cidade da Beira em Moçambique mas que, a pouco e pouco, se vai esbatendo das minhas lembranças.
Aproveitar até ao limite...
Um casal de jovens chega ao
consultório de um médico terapeuta sexual.
O médico
pergunta-lhes:
- O que posso fazer por vocês?
O rapaz responde:
- Poderia ver-nos a fazer sexo?
O médico olha espantado, mas concorda. Quando terminam, o médico diz:
- Não há nada de mal na maneira como vocês fazem sexo. E cobra-lhes 70,00
euros pela consulta.
A cena repete-se por várias semanas. O casal marca um horário, faz sexo
sem nenhum problema, paga ao médico e deixa o consultório. Ao cabo de algum
tempo, o médico resolve perguntar-lhes:
- Afinal, o que estão a tentar descobrir?
E o rapaz responde:
- Nada. O problema é que ela é casada e não posso ir a casa dela.
Eu também sou casado e ela não pode ir a minha casa.
No Hotel Tivoli, um quarto
custa 120,00 euros, no Holliday Inn custa 100,00
euros e aqui fazemos sexo por 70,00
euros, temos acompanhamento médico, é-nos passado um recibo, sou reembolsado em
42,00 euros pela Médis e ainda consigo uma restituição do IRS de 19,25 euros.
E os navios antes atracados ao cais, suspendidos ... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 129
O
frio da morte a pairar sobre a cidade veio das estepes da Sibéria nas asas
brancas dos ventos do inverno glacial. Vinham de longe, traziam meia hora de
atraso, mas quando chegaram foi o fim do mundo.
Os ventos do nordeste, o Terral e o
Aracati, ocuparam-se do barco inglês e do navio do Lloyd, desamarrando-os de
suas insuficientes amarras, batendo um contra o outro num rumor de cascos
rotos.
O vento Aracati jogou o navio do Lloyd
mar afora, sem mastros, cobertas, tombadilho. O Terral, nacionalista
apaixonado, demorou-se a maltratar o cargueiro inglês, passando sua língua de
faca afiada pela garganta dos loiros marinheiros, sua língua de mor e
nordestina.
Terral naufragou o cargueiro perto do
cais, num torvelinho, para que ali ficasse plantado como lembrança e
advertência. Com os ventos, chegaram as chuvas vindas dali mesmo, de perto, da
linha do equador onde dormiam nas florestas húmidas, trazendo todas as águas
estagnadas da maleita, do tifo, da bexiga negra.
Vieram e transformaram a cidade em
milhares de rios, riachos, ribeirões e córregos. O rio Amazonas começou a
inchar, a comer terra com seus dentes ávidos de água, a fabricar ilhas e
cadáveres. A pororoca tanto ampliou seu grito que ele mediu qui lómetros de pavoroso som e foi ouvido nas costas
da África, na cidade de Dakar e em perdidos povoados onde trémulos selvagens
reconheceram o grito de guerra de Xangô.
O povo abandonava as casas, o trovão
rugia, a luz eléctrica fora substituída pelos raios, e eram tantos os
relâmpagos, sucedendo-se um após o outro, que tudo foi possível ver-se, o ruir
das casas, carroças e automóveis levados pelas águas, gaiolas partindo rio
adentro sem comando, indo encalhar nas repentinas ilhas recém-descobertas na terra
arrancada das barrancas.
Ia o povo pela rua em desespero, soltaram-se
os ladrões e os assassinos, ajoelhavam-se homens e mulheres a rezar inventadas
orações, um padre tentou organizar às pressas uma procissão, encheram-se as
igrejas, era o tumulto do juízo final.
E os navios antes atracados ao cais,
suspendidos nas mãos dos ventos de todos os quadrantes, arrancados de suas
amarras, ficaram ao deus-dará da tempestade. E as chuvas a caírem, os pobres a
chorar, os ricos a ranger os dentes.
Durou tudo apenas duas horas, e, se uma
hora mais durasse, teria desaparecido do mapa a cidade de Belém com seus
azulejos portugueses e sua graça antiga.
Desapareceria a cidade de Belém,
engolida pelo dilúvio, levada pelo tufão, mas continuaria o Ita a seus cais amarrado,
com todas aquelas amarras ordenadas pelo Comandante Vasco Moscoso de Aragão,
Capitão de Longo Curso, único entre todos os velhos marinheiros capaz de prever
a tempestade e de contra ela precaver o seu navio. Ali, firme no cais, imóvel e
inamovível, com as suas amarras todas amarrado.
Tão inesperada e brusca como chegou,
assim, de repente, se foi a tempestade. O ar ficou puro e leve, e a verdade
então pairou no firmamento.
Passado o medo, os homens pobres
começaram a contar os mortos e os desaparecidos, os homens ricos a contar os
prejuízos. Os mortos eram poucos, os desaparecidos vários, montavam os
prejuízos a milhões e milhões.
Havia o perigo das febres na cidade agora sem
esgotos. O cais da Port-of-Pará era um monte de destroços. Impávido, em meio à
destruição, o Ita de proa altaneira, salvo por seu comandante.
Quando, já alta a manhã, finalmente
chegaram o representante da Costeira, os oficiais de bordo e o povo, à pensão
de dona Amparo, cuja descoberta tanto lhes custara, Vasco ainda dormia, inocente
de tudo.
O
povo, que na véspera rira e chorara, gritava vivas na manhã de sol. Dona Amparo
chamou à porta do quarto de Vasco, já refeita do terror da noite. Ele acordou,
mas como escutasse os ecos do vozerio, pensou ser tão malvada aquela gente que
ali vinha descobri-lo e insultá-lo.
Tanto bateram à porta, tanto chamaram
por seu nome, que terminou por abrir e enfrentá-los: a barba por fazer, os pés
vestidos de meias, as calças amassadas, a língua pastosa da cachaça. Viu o
imediato em sua frente, comprimia-se o povo pelo corredor.
quinta-feira, julho 10, 2014
Júlio Eglésias - Manuela
Este rapaz, nascido em 1943, que começou a cantar na cama de um hospital, depois de um desastre de automóvel, acompanhando-se à guitarra que uma enfermeira lhe ofereceu, viria a ser o artista latino mais bem sucedido acumulando uma fortuna de 5 biliões de dólares. A sua voz e carisma fizeram o milagre. Jogou nos infantis do Real Madrid como guarda-redes mas o desastre de automóvel deixou-o quase paralisado. Enfim... quando a vida tem de dar certo nada a consegue parar!
(Poema de Fernando Pessoa escrito em 1928)
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei de pensar?
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu ,
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu ,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo.
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando.
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
0 mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num paço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
0 seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo.
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando.
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
0 mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num paço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
0 seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena; Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
0 dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
E o que podia fazer de mim não o fiz.
0 dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra ,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra ,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou á janela.
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou á janela.
0 homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(0 Dono da Tabacaria chegou á porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria sorriu.
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(0 Dono da Tabacaria chegou á porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria sorriu.
Datado de 1928, o poema Tabacaria enquadra-se na terceira fase poética de Álvaro de Campos, a fase, "intimista", onde mergulha nas profundezas da angústia e do pessimismo.
O autor retorna ao tema do cansaço, da inquietação diante do incompreensível. Tabacaria é o melhor exemplo deste último período criativo de Campos. Talvez, seja a poesia mais significativa desse heterônimo, pois nela podemos encontrar muitas das características presentes em sua obra.
No poema é predominante o niilismo, o sentimento de revolta, o inconformismo, a desumanização, também, um deprimente vazio e a desilusão própria dos tempos pós-guerra e certo desleixo do português, como o próprio Pessoa afirmou em apontamentos.
Os novos sexagenários |
Os Novos
Sexagenários
Se estivermos atentos, podemos notar que está a surgir uma nova faixa social, a das pessoas que estão em torno do sessenta/setenta anos de idade, os sexalescentes- é a geração que rejeita a palavra "sexagenário", porque simplesmente não está nos seus planos deixar-se envelhecer.
Trata-se
de uma verdadeira novidade demográfica - parecida com a que, em meados do século
XX, se deu com a consciência da idade da adolescência, que deu identidade a uma
massa jovens oprimidos em corpos desenvolvidos, que até então não sabiam onde
meter-se nem como vestir-se.
Este novo grupo humano, que hoje ronda os
sessenta/setenta, teve uma vida razoavelmente satisfatória.
São homens e
mulheres independentes, que trabalham há muitos anos e que conseguiram mudar o
significado tétrico que tantos autores deram, durante décadas, ao conceito de
trabalho. Que procuraram e encontraram há muito a atividade de que mais gostavam
e que com ela ganharam a vida.
Talvez
seja por isso que se sentem realizados...
Alguns
nem sonham em aposentar-se. E os que já se aposentaram gozam plenamente cada dia
sem medo do ócio ou solidão. Desfrutam a situação, porque depois de anos de
trabalho, criação dos filhos, preocupações, fracassos e sucessos, sabe bem olhar
para o mar sem pensar em mais nada, ou seguir o voo de um pássaro de sua
janela......
Neste universo de pessoas saudáveis, curiosas e ativas, a
mulher tem um papel destacado. Traz décadas de experiência de fazer a sua
vontade, quando as suas mães só podiam obedecer, e de ocupar lugares na
sociedade que as suas mães nem tinham sonhado ocupar.
Algumas coisas
podem dar-se por adquiridas.
Por exemplo, não são pessoas que estejam
paradas no tempo: a geração dos "sessenta/setenta", homens e mulheres, lida com
o computador como se o tivesse feito toda a vida. Escrevem aos filhos que estão
longe e até se esquecem do velho telefone para contactar os amigos - mandam
e-mails com as suas notícias, ideias e vivências.
De uma maneira geral
estão satisfeitos com o seu estado civil e quando não estão, não se conformam e
procuram mudá-lo. Raramente se desfazem em prantos sentimentais.
Ao
contrário dos jovens, os sexalescentes conhecem e pesam todos os
riscos.
Ninguém
se põe a chorar quando perde: apenas reflecte, toma nota, e parte para
outra...
... Os homens não invejam a aparência das jovens estrelas do
desporto, ou dos que ostentam um fato Armani, nem as mulheres sonham em
ter as formas perfeitas de uma modelo. Em vez disso, conhecem a importância
de um olhar cúmplice, de uma frase inteligente ou de um sorriso iluminado pela
experiência.
Hoje,
as pessoas na década dos sessenta/setenta, como tem sido seu costume ao longo da
sua vida, estão estreando uma idade que não tem nome. Antes seriam velhos e
agora já não o são. Hoje estão de boa saúde, física e mental, recordam
a juventude mas sem nostalgias parvas, porque a juventude ela própria também
está cheia de nostalgias
e de problemas.
Celebram
o sol em cada manhã e sorriem para si próprios...Talvez por alguma secreta razão
que só sabem e saberão os que chegam aos 60/70.