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Adormece na praia, nu em pelo. |
Tieta
do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO
Nº 108
Na
ausência da tia, porém, permanece leproso, marcado com o ferrete dos malditos,
em danação, sem instância de saúde, pois ela não estando, os demónios se
apossam dele e o revestem inteiro de pecado, exibindo-o indigno e perdido.
Na rede Ricardo a procura, por que ela demora tanto?
Abandonara o
colchão de crina da cama do Comandante e de dona Laura, como deitar-se ali sem
a ingrata?
Em Agreste, quando ainda lutava para manter a castidade, nas noites
de tentação, na rede pendurada no gabinete do doutor Fulgêncio, na insónia ou
no sonho, ele a enxergava e sentia nua, a perturbá-lo até que aflito se
esvaísse na tentativa de possui-la sem saber como.
Durante todas aquelas
noites, a tivera a seu lado, não adiantando prece e promessa, nem o decidido
propósito de repelir a visão satânica a torná-lo possesso.
Que faz a desalmada em Agreste que não vem em seu socorro, libertá-lo?
Quase o ofende sabê-la na cidade, longe dele. Lá, todos os homens vivem de
olhos postos nela; se atravessa a rua, as miradas e os comentários seguem-lhe o
rastro das ancas em
balouço. Cercada por um halo de desejo reprimido, ciranda de
fogo na qual todos participam: de Osnar, com a boca suja e a boca solta, a
Barbozinha, cujos versos descrevem-na nua e impúdica na espuma das ondas; do
árabe Chalita, que a conheceu mocinha, a Seixas, que a prefere às primas; de
Aminthas, metido a engraçado, a Bafo de Bode, em destempero e afronta.
Ricardo,
acompanhando a tia, vestido de batina, ouvira, ao passar, a frase infame do
mendigo: ai, quem me dera morrer na sombra desse copado buceteiro!
Em lugar de zangar-se, Tieta sorrira-se enquanto o seminarista virava o
rosto para esconder a confusão.
Aprisionada nesse círculo de desejo, distante
dos seus braços quem sabe se, leviana não sorrira para algum outro?
Qual?
Ricardo, não personaliza, todos lhe parecendo indignos dela, não merecendo
sequer fitá-la, quanto mais recolher sorriso, olhar, gesto de interesse e
atendimento.
Quem mais indigno, todavia, que ele próprio, por menino, sobrinho e
seminarista, com votos jurados e ignorância completa?
Não obstante, ela
atentara em sua presença, sentira-se perturbada com a ânsia a devorá-lo,
correspondera-lhe ao desejo.
É verdade que, nesse estranho caso, Satanás
encontrava-se envolvido, directamente interessado na conquista
de duas almas puras: a dele e a da tia.
Os outros, eram todos uns perdidos, do
bêbado imundo a Peto, com treze anos incompletos e desregrados.
Com qual deles? De repente, na noite aflita, de demónios soltos, Ricardo
esquece o pecado, o medo do castigo, o temor de Deus, o sentimento de culpa,
preso a um pensamento apenas, único e terrível, que se apossa dele e o
mortifica, aperta-lhe o coração, sufoca-lhe o peito: imaginar que ela, Tieta,
sua Tieta, sua mulher, sua amante, possa estar gemendo em outros braços,
beijando outra boca, resvalando a mão por outro peito, enrolando as coxas
noutras coxas.
Com outro a enxerga, a suspirar e rir; será Ascânio, tio
Astério, o Comandante, quem?
Ricardo não suporta pensar nisso, fecha os olhos para não ver. Não
existe lepra, estigma, fogo do inferno que se com pare a esse sentimento a
afogá-lo em raiva, destroçando-lhe as entranhas, pondo gosto de fel na saliva
entre os seus dentes, uma dor aguda a lhe atravessar os ovos.
Em cama ou rede,
em chão de terra ou de areia, com outro a desfalecer, a nascer e a morrer, ah,
não!
Se tal desgraça acontecesse, aos crimes contra a castidade, ele
acrescentaria crime de morte, de assassinato e suicídio. Somente Deus que dá a
vida, pode dar a morte, Ricardo sabe.
Mas se levantaria contra Deus, preferindo
vê-la defunta do que em desmaio noutros braços e, sem ela, não deseja a vida e
sim a morte.
A lua se desfaz em minguante na noite de destroços, Ricardo desce aos
infernos, se consome no ciúme, como pode sofrer tanto? Salta da rede, corre
para o mar, o camisolão o atrapalha, ele o arranca e joga longe, atira-se na
água, nada até cansar, até o completo esgotamento. Adormece na praia, nu em
pelo.