Memórias Futuras
Olhar o futuro pelo espelho retrovisor da história. Qual história? Que futuro?
sábado, setembro 05, 2015
Alceu Paiva Valença (São Bento do Una, 1 de julho de 1946) é um cantor e compositor brasileiro. Seu disco de estreia foi gravado em parceria com Geraldo Azevedo.
Nasceu no interior de Pernambuco, nos limites do sertão com o agreste. Influenciado pelos maracatus, cocos e repentes de viola, Alceu conseguiu utilizar a guitarra com baixo elétrico e, mais tarde, com o sintetizador eletrônico nas suas canções.
Houve quem gastasse até ao último dez réis |
Tocaia Grande
(Jorge Amado)
Episódio Nº 330
Sem sair do lugar, as pastoras
movimentavam os pés nos passos do bailado, obedecendo à orquestra de sanfona,
bombo e cavaqui nhos.
A Senhorita Dona Deusa evoluía com o
estandarte - uma face azul, a outra cor-de-rosa. Na azul, em letras cor-derosa,
o nome do reisado: na cor-de-rosa, as letras eram azuis, feitas umas e outras com retalhos de fazenda: REISADO DE LEOCÁDIA BENVINDA DE ANDRADE.
Quem tiver seu boi
Que prenda no mourão
Que eu não tenho roça
Pra boi ladrão.
Os espectadores dividiam suas simpatias
entre os dois cordões na disputa do estandarte: a Senhorita Dona Deusa o
entregaria, no final, à ala que recebesse, em moedas de vintém e de tostão, maiores
provas da preferência do público.
Houve quem gastasse até o último dez réis
colocando-o no bolso do avental azul ou encarnado dessa ou daquela pastora.
Zinho, e Balbino se bateram níquel a
níquel até ficarem limpos. Zinho, patrono de Cleide, a pastora Ribeirinha do
cordão azul, Balbino sustentando as cores do encarnado na pessoa de Chica,
filha de Amâncio, o Temeroso, menina-moça de olhares e requebros de mulher
feita, a gentil pastora Juriti.
O Caboclo Gostosinho foi buscar o Boi e o
trouxe de volta ao centro das alas depois de tê-lo levado a reverenciar o
Capitão e Fadul, Coroca e seu Carlinhos Silva, sia Natalina, José dos Santos e
sia Clara.
O palhaço Mateus fez sua entrada, vadiando
com os meninos, gracejando com as mulheres, virando cambalhotas, a cara pintada
com alvaiade.
Dirigiu-se ao Caboclo, propondo comprar- lhe
o Boi por três vinténs:
Eu tenho um vintém
Jaci me deu dois
Pra comprar de fita
Pra laçar meu Boi
O coro das pastoras respondia:
Oi, iaiâ, oi
O Boi que te dá
Enquanto Mateus cantava sua parte, surgiu
da escuridão o Jaraguá, envergando a horrenda vestimenta de Besta-Fera, o corpo
escondido numa armação de varas de bambu, revestida de chita, uma carcaça de
jumento fazendo as vezes de cabeça.
Investia em pragas e bufas, espalhava o
povo, dava medo. As pastoras denunciaram-no:
Lá vem o Temeroso
Que bicho feio
Feio e malvado. Saltou sobre o Boi, lutou
com ele - o Boi usando os chifres, Jaraguá armado de poderes infernais – em combate
tremembundo, conforme comentou Mateus dirigindo-se à assistência.
Segurando o Boi pelos cornos, Temeroso o
derrubou no chão e, sem piedade, o matou.
(Domingos Amaral)
Episódio Nº 51
Sei do que falo, embora eu até fosse o que menos olhasse para as mouras, sobretudo a partir daquela Páscoa em Viseu.
De qualquer forma, todos
sabíamos que Fátima era virgem e que nunca se amigara com um cristão, pois
destilava ódio aos seguidores de Jesus.
Já a sua irmã Zaida, apesar
de também intocada, era meiga e carinhosa, e dizia sempre que herdara o espírito
sensível e caloroso dos haréns de Sevilha, do tempo do seu bisavô e rei
Al-Mutamid, onde as mulheres se beijavam umas às outras, na aprendizagem constante
dos prazeres mais profundos, que depois praticavam com os homens.
Ela e a mãe dormiam na mesma
cama, mas Fátima nunca participava nessas distracções, parecia fechada à festa
dos sentidos.
Em comum, as irmãs só tinham
o negro dos olhos e dos longos cabelos.
Enquanto Fátima apresentava um
perfil agreste, cheio de arestas no rosto, Zaida era redonda de cara e de
corpo, parecida com Zulmira, que topava os olhares gulosos que cristãos e moçárabes
deitavam à filha mais nova, bem como os piropos com que homens e mulheres a
brindavam!
Em família, como anos mais
tarde me confessou, Zaida pagava um preço pela sua popularidade. Com ciúmes, Fátima
chamava constantemente de gorda ou balofa, acusando-a de comer de mais e não
fazer exercícios.
Todavia, ela não parecia
importar-se. Não nascera para ginástica nem para a guerra. “Não sou nenhuma
amazona, sou assim e tu és como és, nenhuma está mal ou bem”, proclamara um
dia, e a partir dessa data a irmã nunca mais a chamara para treinar com espadas
ou punhais.
A minha Maria Gomes diria
certa vez que Zaida era um pote de mel, enquanto Fátima era uma vespa
impetuosa. Com um carácter fluido e volúvel, Zaida nunca se enfurecia contra os
outros ou contra o destino e parecia sempre contemplativa e em paz com o mundo.
Contudo, faltava-lhe a
energia primária e bruta da irmã, e talvez por isso fosse dada a doenças. Por
isso ou porque lia de mais, apanhando pouco sol e muito pó.
O seu maior prazer era
correr para as bibliotecas da Sé de Coimbra ou do Mosteiro de Guimarães, onde
passava os dias a devorar páginas, a ponto de preocupar a mãe, a quem ela
parecia muitas vezes aluada, a viver num eterno mundo de fantasia e com
demasiada curiosidade pelo velho Testamento.
Nove anos depois daquela
manhã em Coimbra, em que perdera as esperanças de que o marido Taxfin, as
salvasse do cativeiro, Zulmira mantinha como imperativo moral da sua existência
a fidelidade ao Corão, o seu fascínio pela Génesis levava a mãe a temer que ela
cedesse a essa interdita tentação.
Joana Amaral Dias e o seu companheiro |
O Nu de Joana
Amaral
Dias
Enquanto Joana Amaral
Dias, cabeça de lista por Lisboa, do partido Agir, de extrema esquerda, ela que
já foi deputada do Parlamento pelo Bloco, se deixa fotografar abraçada pelo
namorado, dez anos mais novo, de quem vai ter um filho, mostrando toda a sua
nudez na capa da Revista Cristina,
Passos Coelho, ao contrário, esconde-se.
Não é só não dar o corpo ao manifesto, como a Joana Amaral, é não ir conversar com os Gato
Fedorento, não aceitando o convite como fez em anos anteriores, é boicotar a
entrevista colectiva de líderes na TV e, vamos ver, se será entrevistado pela
SIC e RTP.
É um apagamento
voluntário, as sondagens animam-no, quem sabe se neste último mês, com ele
escondido, os portugueses não vão esquecer o que ele lhes fez nos últimos
quatro anos?
Sempre comedido,
meneando a cabeça numa concordância perpétua, sem elevar o tom de voz, ele
mantêm-se impassível em obediência à estratégia delineada para a campanha.
Eles sabem que os
portugueses apreciam este estilo. Com excepção dos comunistas, o povo, no
antigamente, respeitava e apreciava a figura do Salazar, exactamente porque ele
era uma pessoa distante, superior, desprendida das coisas, sempre com um ar
austero.
Filipe La Féria não o qui s quando ele se lhe ofereceu para tenor porque não
o considerou bom de palco, ficando-se a saber hoje que tinha razão porque as
sondagens favoreceram-no quando ele desaparece de cena.
A estratégia da
campanha está delineada ao pormenor pela Coligação, tudo pronto, até o local
onde terá lugar o discurso da vitória a 4 de Outubro.
Entretanto, as rotundas
do país, continuam a aguardar o plakar com o rosto de Passos Coelho que
aparecerá, certamente, nos últimos dias de campanha.
“Um rosto com os
cantos da boca caídos e botox mental que lhe permite o ar grave, com os olhos
que se esvaziam à medida que a voz se torna colocada”, no dizer de Ferreira
Fernandes.
Passos coelho é um
estereótipo de político. Tudo nele é estudado e ensaiado e agora percebemos
melhor porque tirou um curso inferior em vez de um superior. O que ele estudou
verdadeiramente, foi Ensaio para Político e, no grupo dele, efectivamente,
ninguém desempenhava melhor esse papel pelo que, a escolha de José Relvas, foi
automática e sem hesitações: é este que vai mandar no partido e depois no país.
Agora, ele espera e acredita
na falta de memória de populações envelhecidas e ameaçadas insistentemente pela
banca rota do Sócrates, que já foi das outras eleições mas que também serve
para estas à falta de qualquer outra coisa.
Nesta sociedade,
cada vez mais fora da compreensão das pessoas, em que acontecem coisas tão
estranhas como a falência do Espírito Santo, o Dono Disto Tudo, como não ter
medo?
Se o Ricardo E.
Santo está preso em casa, e José Sócrates saiu ontem da prisão de Évora para a
domiciliária, como não ter medo se os poderosos são tratados desta maneira?
Salva-nos, Passos
Coelho, prometemos-te não ser mais piegas!
sexta-feira, setembro 04, 2015
Elvis Presley - No More
Em calções de banho ou fato com lantejoulas, a voz é sempre a mesma e única.
Chegou as moreninhas, oi que dança almofadinha |
Tocaia Grande
(Jorge Amado)
Episódio Nº 329
Os habitantes do lugar que não participavam
do reisado nem por isso mostravam-se menos orgulhosos. Misturados à malta de
forasteiros, arrotavam importância e gabolice no louvor do Reisado de Sia
Leocádia, ostentação de Tocaia Grande.
Em Taquaras um bumba-meu-boi saía à rua
nas festas dos Reis Magos. Desanimado e pobre, meia dúzia de pastoras
esfarrapadas, figuração de merda: sacos velhos de aniagem fazendo as vezes do
couro do Boi, o Vaqueiro esmolambento, a Caapora vestida de folhagem trazida do
mato e se acabou.
Comparado com o reisado de Tocaia Grande,
uma lástima.
Ao desembocar no descampado, os figurantes
do pastoril haviam atingido o auge da animação no calor da dança já dançada e
dos tragos já emborcados: o suor escorrendo pelos rostos, os pés descalços,
negros de poeira, o bodum solto no ar, inebriante.
Montada em seus sapatos comprados na loja
de seu Américo, em Estância, a alta travessa no cocuruto da cabeça - coroa inconteste de rainha! - sia Leocádia equi librou-se em cima de um caixão de querosene,
vazio, trazido do armazém do turco.
Com suas ossudas mãos de octogenária bateu
palmas e pediu silêncio: o reisado ia iniciar suas jornadas.
Balbúrdia, barafunda, gritaria,
gargalhadas, dichotes, palavrões, diabruras dos moleques com toda a corda,
tremenda barulheira: o rogo de sia Leocádia, velhinha frágil e miúda, mais do
que um absurdo, era perda de tempo, tolice sem tamanho.
Pois bem: mal ela bateu palmas e anunciou
o começo da função, cessou todo e qualquer bulício, o silêncio foi total,
absoluto.
Nem o mais leve rumor, apenas as
respirações ansiosas, o palpitar dos corações.
A apresentação se iniciou com o Canto da
Pedição e os benditos, as danças dos cordões e as das pastoras, jornadas já vistas
e ouvidas nas casas particulares, nem por isso menos aplaudidas:
Chegou as moreninhas
Oi que dança almofadinha.
Daí em diante tudo foi novidade, encanto e
fantasia. Do centro das alas destacou-se o Boi para fazer a sua entrada.
Começou por botar a molecada para correr, ameaçando chifrar os mais ousados,
enquanto o figura cantava o Canto da Entrada do Boi:
Quem tiver seu boi
Que prenda no curral
Que eu não tenho roça
Pra boi soná
(Domingos Amaral)
Episódio Nº 50
Fátima apontou o dedo para
um curral nas traseiras dos edifícios, onde eram visíveis vários suínos a
chafurdarem na lama.
. Estava a falar daqueles.
Veloz de espírito, Raimunda
retorqui u-lhe:
- Os porcos deram tal susto
ao vosso califa que ele se borrou de medo e há nove anos que não volta.
Fátima preparava-se para
disparar nova salva de crueldades, quando Zulmira se intrometeu, evitando o
azedar da polémica.
- E vós, não ides à missa? É
Sexta-Feira Santa.
Raimunda enfrentou a
distinta muçulmana com uma ponta de hostilidade, responsabilizando-a pelo
desbragamento da filha.
- Tendes de pôr pimenta na língua
da Fátima!
Nove anos depois da bulha
infantil com Afonso Henriques, a mais velha das meninas mouras continuava uma
fera bravia e indomável.
Contava-se que certa vez
tentara convencer o moçárabe de Coimbra a organizar uma fuga, levando-a dali
com a mãe e a irmã, provavelmente com destino a Córdova.
A partir de então todos
andavam de olho nela e rapidamente denunciavam qualquer engenhoso plano que
elaborasse para se escapulir.
Frustrada, a jovem moura
vingava-se com ditos excessivos e cruéis, com os quais fustigava os cristãos.
Embora por vezes temesse as
imprevisíveis consequências da linguagem da filha, recordo-me bem do orgulho
que Zulmira tinha nela, tão esperta e combativa.
Além disso, e ao pé da minha
prima Raimunda que era só pele e ossos, Fátima destacava-se, exuberante e
vistosa.
Os longos cabelos negros,
sempre desalinhados, o nariz fino e espetado, as sobrancelhas escuras e suaves,
o queixo pontiagudo e uns olhos escuros, que pareciam azeitonas de Andaluzia a
brilharem ao sol depois de colhidas, não faziam de Fátima uma mulher demasiado
bela, como a irmã Zaida era, mas mesmo assim fascinava os machos com a forma
como mexia as ancas, a maneira como se empertigava, espetando os pequenos seios
para a frente, para que reparassem neles.
Há uns anos atrás, já
bons, um amigo meu, engenheiro numa fábrica de fazer azeite, hoje uma grande
marca de azeites comercializada em Portugal, e a que eu, em rapaz, chamava
simplesmente de lagar de azeite, porque o meu avô tinha um que fazia as minhas
delícias durante as férias de Natal.
Lá passava os dias,
entretido, entre seiras, capachos e o bagaço da azeitona. Mas, o que eu
mais gostava, era quando me sentava para almoçar com os trabalhadores, a sopa
de couves com feijão que a minha avó tinha posto a cozer ao lume da lareira
logo de madrugada e que, à hora da comida, era despejada sobre um grande prato
de lata, base de uma medida de 10 litros , de onde todos comíamos, depois do
mestre a regar com azeite acabado de fazer, a saber ainda à oliveira, e ele próprio começar a comer, por
uma questão de respeito. Coisas de outros tempos…
Mas, dizia-me esse
amigo engenheiro, que em casa dele não tinha televisão e que as filhas, se qui sessem, fossem vê-la a casa das amigas. Tinha
sido uma opção dele.
Passados todos estes
anos não sei se o meu amigo engenheiro, de então, já tem televisão ou continua
fiel à opção feita.
Eu tenho televisão,
daquelas 3D, com uma imagem tão nítida e perfeita que até parece bruxedo, mas a
utilização que hoje lhe dou é diferente.
Para não me alongar
muito, direi que migrei. Não consegui acompanhar os gostos dos meus concidadãos
que alimentam os canais generalistas e fui-me embora, ver algum desporto, dois
ou três desafios de futebol ao fim de semana, os grandes torneios de ténis e de
atletismo e os canais temáticos, perfeitamente inofensivos, da Odisseia,
National Geografic e História.
Fujo,
principalmente, dos telejornais cujas notícias já li, logo de manhã, no meu
Diário de Notícias, enquanto no Café tomo o pequeno almoço.
As imagens da
televisão que acompanham as notícias são escolhidas para nos ferirem a
sensibilidade, chocarem-nos, como se fôssemos todos masoqui stas e gostássemos de sofrer.
Quem se fixe muito nelas, corre o risco de ter
pesadelos e ver a sua casa a arder quando, na época dos fogos, que entre nós
entra pelo Setembro dentro, recebe, na sua televisão da sala, "overdoses" de mato
e árvores a arderem, com os bombeiros em segundo plano e um senhor em destaque, com
um microfone nas mãos, que nos repete por várias vezes e quase sempre de forma
atrapalhada, a descrição do que, nós próprios, estamos a ver.
Pior, agora, é o de podermos acordar com pesadelos de rostos de pessoas, homens, mulheres e crianças, elas de
cabeça coberta com um lenço, e todos de feições inexpressivas que espreitam do qui ntal da nossa casa para o quarto onde dormimos e
nos dizem, na indefinição do seu olhar: “estamos aqui
e queremos entrar”.
Eu tive um
pressentimento mau a quando das “primaveras árabes” vividas em 2010 por quase
todos os países do Norte de África de onde agora fogem, em reportagens de então
cheias de opt imismo, como era
documentado.
- Como iriam eles
concretizar os sonhos que estavam a festejar? – Foi este o pressentimento que tive, mau,
perigoso, mas não nada disto. Era impossível.
O que está a
acontecer é muito pior que tudo aqui lo
que de mau se pudesse pensar. Só um catastrofista o poderia imaginar e, mesmo
esse, tenho muitas dúvidas que tivesse imaginação suficiente.
Será deste mundo
imagens de homens a cortar pescoços de outros homens ajoelhados a seus pés e a
televisão fazer a transmissão dessas cenas para as nossas casas?
Não há palavras, não
há pensamentos, apenas a vontade de não acreditar, aqui lo
não podia ser verdade, não podia ter acontecido.
Mas, se aconteceu,
por que não partiram no outro dia os exécitos dos países ocidentais: ingleses,
franceses, americanos, em perseguição daqueles criminosos?
- Porque continuam
eles a matar e a destruir sem que ninguém os afronte directamente?
- Julgavam que o Mar
Mediterrâneo seria obstáculo suficiente para impedir que as pessoas fugissem
daqueles loucos perigosos?
Não! É tudo
demasiado mau. Para salvaguarda da estabilidade do nosso espírito, para
podermos dormir sem pesadelos, temos mesmo que migrar dos canais generalistas e
de notícias da televisão.
Fiquemo-nos pela
leitura do jornal enquanto tomamos o pequeno almoço porque este é o mundo que
existe e nós estamos nele. Só por isso.
quinta-feira, setembro 03, 2015
Putas, nem se fala |
Tocaia Grande
(Jorge Amado)
Episódio Nº 328
Acordado pela cantoria e pelo baticum do
bombo, o papagaio
Vá-Tomar-no-Cu alvoroçou-se no poleiro:
sacudia as asas, gritava palavrões enquanto todo o figurá se reunia para entoar
as estrofes finais:
Eu vou embora
Pra minha terra
Vou voltar meu pessoal
A última volteada na sala, o reisado
acenava adeus:
Quitariô, qui lariá
A Estrela-D Alva
Só qui lareia
lá no mar
Vacilante luz de vaga-lumes, as lanternas
das pastoras na descida da colina, atrás a população de Tocaia Grande,
acrescida do capitão Natário da Fonseca, de sia Zilda e dos filhos do casal, os
de sangue e os de criação.
13
Dançaram e cantaram, comeram e beberam,
folgaram à la vonté, em diferentes casas e locais, homenageando pessoas que
haviam concorrido para a saída do reisado:
os tamanqueiros Guaraciaba e Elói Coutinho, Guido, Lupiscínio, o Turco Fadul, sai
Natalina, dona Valentina e Jucá Neves, donos da Pensão Central, sem esquecer
Coroca: a casa de madeira, na Baixa dos Sapos.
Concluíram o percurso da amizade no
deposito de cacau seco onde, ao som do bombo oferecido por Koifman & Cia, o
pastoril agradeceu a seu Carlinhos Silva o apoio e o interesse: o comprador de
cacau não perdera um só ensaio, de tudo tomando nota quando não estava batendo
coxa nos assustados.
A apoteose, porém, o nunca visto, cujo
registro se faz obrigatório, ocorreu no descampado, diante do barracão, no
local da feira, já noite fechada.
Não faltara um único vivente, à exceção de
Altamirando, conforme se contou. Das Dores, sua mulher, esteve presente, mas demorou-se
pouco; desde que deixara o sertão não tornara a ver um terno de pastoras: gostava
tanto! Vieram os moradores dos dois lados do rio, os do arraial e os dos
roçados: velhos, adultos, moços e meninos, os pequeninos da última parição escanchados
nas ancas das mães.
Quem visse aquele mundão de gente reunido
no descampado poderia até pensar que Tocaia Grande era uma vila populosa, pois das
fazendas haviam chegado levas de alugados e mateiros e o tráfego das tropas
crescera nas noites de Reis.
Putas, nem se fala.
Diálogo entre
um homem
e uma mulher
Mulher:
- Você
bebe?
Homem:
-
Sim.
Mulher:
- Quanto por
dia?
Homem:
- 3
uísques.
Mulher:
- Quanto paga
por um uísque?
Homem:
Cerca de
€10.
Mulher:
- Há quanto
tempo você bebe?
Homem:
- Há 20
anos.
Mulher:
- Se um uísque
custa €10 e você bebe 3 por dia = € 900 por mês = €10.800 por ano,
certo?
Homem:
-
Correcto.
Mulher:
- Se num ano
você gasta €10.800 sem contar com a inflação, em 20 anos você gastou €216.000,
certo?
Homem:
-
Correcto.
Mulher:
- Você sabia que com esse dinheiro aplicado
e corrigido a juros compostos durante 20 anos você poderia comprar um
Ferrari?
Homem:
Mulher:
-
Não.
Homem:
- Então ...
onde está a porra do seu Ferrari
?
|
(Domingos Amaral)
Episódio Nº 49
Não só se amigava com o
primo Tougues, como tempos antes, em ponte de Lima, se amigara com Ramiro! E
agora, descarada, fazia olhinhos de corça ao pai dele!
Aquelas pequenas nódoas na
reputação da vivaça moça, sussurradas a ouvidos atentos e espalhadas por
línguas palradoras, aniqui lariam
qualquer possível enlace com Afonso Henriques.
O príncipe jamais casaria
com uma tola que rodava de mão em mão.
“Jumenta, vou dar cabo de
ti”, foi o que pensou a minha prima Raimunda, cada vez mais brava. Só depois
olhou para Ramiro e teve pena dele.
Estarrecido, o pobre rapaz,
não conseguia balbuciar palavra enquanto vira o pai partir, de braço dado à
beldade.
Raimunda também sentiu uma
certa cumplicidade de estatuto. Ramiro e ela eram semelhantes: os ilegítimos,
os bastardos, cujo futuro seria a guerra ou o mosteiro.
- Ninguém nos quer para casar - lamentou-se
depois minha prima.
Ao longo da vida, dei-me
conta de que o infortúnio de nascença é razão de muitos ódios, e há quem nunca
se liberte da sua condição de partida.
Viseu, Sexta-Feira Santa,
Abril de 1126
- Quem andais a espiar outra
vez, ó vara de virar tripas?
Rodando os pés no chão,
Raimunda deu de caras com Fátima e com Zaida, as filhas de Zulmira, que as
seguia coberta por um manto roxo.
- Julgava-vos em Coimbra – exclamou minha
prima surpreendida.
Fátima libertou uma
gargalhada desdenhosa, enquanto a irmã se refugiava na sombra da mãe. As três
mouras continuavam prisioneiras dos cristãos, uma década depois de terem sido apanhadas.
Fátima contava já dezanove
anos, enquanto Zaida ia nos dezasseis.
Por vezes acompanhavam a
corte de Dona Teresa e haviam conhecido Guimarães e o Porto, Tui e Lamego,
Braga e agora Lamego.
No inverno do ano anterior
haviam mesmo peregrinado até ao mosteiro de Sahagún, passando de caminho por
Astorga e Zamora, mas depois Zulmira adoecera de forma inesperada durante a
descida para Toledo, a última cidade que estava previsto conhecer naquele longo
passeio, e regressara mais cedo a Coimbra com as filhas, enquanto Dona Teresa
seguia até à antiga capital visigótica.
Viemos festejar a Páscoa com
os porcos – disparou Fátima.
A filha bastarda de Ermígio
Moniz semicerrou os olhos, irritada.
- Vede como falais, não
tenho medo de vós.