Memórias Futuras
Olhar o futuro pelo espelho retrovisor da história. Qual história? Que futuro?
sábado, março 31, 2012
Um casal conversava:
- Posso não ser rico, não ter dinheiro, apartamentos de luxo, carros importados ou empresas como o meu amigo João Costa , mas amo-te muito, adoro-te, sou louco por ti.
Ela olhou-o com lágrimas a cair dos seus olhos, abraçou-o como se não existisse o amanhã, e disse bem baixinho ao seu ouvido:
- Se me amas de verdade, apresenta-me o João Costa .
Entrevista a Mário Soares (continuação)
Fui durante muitos anos amigo dele, tínhamos um contacto quase diário. Eu gosto dele, dou-me bem com o temperamento dele... Mas não aprecio a maneira como se tem comportado como militante do PS. Com um pé dentro e outro fora...
Se Manuel Alegre for candidato às Presidenciais, apoia-o?
Só me posso decidir, por um candidato, depois de haver um candidato oficial do Partido Socialista. Eu apoio o candidato do Partido Socialista, porque sou militante do Partido Socialista, desde a sua fundação. Hoje - diga-se - como militante de base, como convém à minha idade.
Escreveu há dias que José Sócrates podia fartar-se e ir-se embora...
Espero que não aconteça. Mas todos deviam ter algum cuidado com isso, incluindo os partidos e o Presidente Cavaco Silva. Se Sócrates decidisse ir-se embora agora, Portugal ficaria numa situação de verdadeira ingovernabilidade. (Esta posição não está actualizada)
Acha que se está já perante uma situação de esticar a corda?
Sim, estou muito preocupado com essa hipótese. É um sentimento generalizado em Portugal. A circunstância de a oposição estar a transformar o Parlamento num "governo de Assembleia" contraria as pessoas, sem haver mais do que uma coligação negativa, é muito perigoso.
Como vai comemorar o dia dos anos?
Vou ficar em casa, tenho muito que fazer, vou aproveitar para continuar a escrever um livro que tenho na forja. E ler. Tenho leituras em atraso.
Não liga ao dia de anos?
Não! Na minha idade os anos desfazem--se, não se fazem!
O seu sobrinho Eduardo disse uma vez que tinha menos quase 30 anos do que a sua idade real...
O meu sobrinho é um amigo... Não me queixo. Tenho bons genes. O meu Pai morreu aos 92. Fui muito doente quando era jovem, tinha asma. Mas por volta dos 18 anos a asma passou. E passou--me completamente, até agora. Dantes andava sempre com uma bomba no bolso, que me tirava a asma. Até houve uma história, depois da Campanha do Delgado, num 5 de Outubro, que lhe conto. Fui preso e posto, provisoriamente, antes de ir para a PIDE, numa esquadra no Alto de São João. Eu tinha um tio, irmão da minha mãe, que era uma excelente pessoa, bondoso e simples.
A minha mulher disse ao meu tio "Ó tio Nobre, veja se entra ali na esquadra e pergunta ao Mário se levou a bomba da asma". A esquadra estava numa confusão, presos e pessoas a entrar e a sair. Entra o meu tio pela esquadra dentro e grita: "Ó Mário, trouxeste a bomba?" O polícia levanta-se e diz: "Caiam em cima desse homem!" Eu gritei: "Alto! Essa bomba não é a sério, é só por causa da asma"...
GABRIELA
CRAVO
E
CANELA
Episódio Nº 62
Todas as tardes terminadas as aulas e a indispensável prosa na Papelaria Modelo, o professor vinha passear na praça, vinte vezes passava ante o jardim de Malvina, vinte vezes o seu olhar suplicante pousava-se na moça em muda declaração.
No bar de Nacib, os fregueses habituais seguiam a peregrinação quotidiana com comentários risonhos:
- O professor é obstinado…
- Quer fazer sua independência… - ganhar roça de cacau sem o trabalho de plantar.
- Lá vai ele para sua penitência… - diziam as solteironas ao vê-lo chegar à praça, afobado e simpatizavam com ele, com aquela ardente paixão não correspondida.
- O que ela, é eu sei: uma sirigaita metida a importante. Que espera melhor do que um moço tão inteligente?
- Mas pobre…
- Casamento de dinheiro não traz felicidade. Um moço tão bom, tão cheio de letras, até escreve versos…
Nas proximidades da igreja, Josué diminuía o passo acelerado, tirava o chapéu, dobrando-se quase em dois ao cumprimentar as solteironas.
- Tão educado. Um moço fino…
- Mas fraco do peito…
- Dr. Plínio disse que ele não tem nada do pulmão. É só franzino.
- Uma espevitada, é o que ela é. Porque tem uma carinha bonita e o pai tem dinheiro. E o moço, coitado tão influído… – Um suspiro elevava-se do peito encarquilhado.
Seguido pelos simpáticos comentários das solteironas e pelas injustas opiniões emitidas no bar, aproximava-se Josué da janela de Glória.
Era para ver Malvina, bela e fria, que, nos fins da tarde, ele vinte vezes fazia aquele percurso em passos lentos, um livro de versos na mão. Mas de passagem, o seu olhar romântico pousava nos seios altos de Glória colocados na janela com sobre uma bandeja azul. E dos seus seios subia para o rosto moreno, de lábios carnudos e ávidos, de olhos entornados em permanente convite.
Acendiam-se em pecaminoso e material desejo os olhos românticos de Josué e um calor cobria-lhe a palidez da face. Por um instante apenas, pois, passada a tentação da janela mal-afamada, retornavam seus olhos à expressão de súplica e desesperança, mais pálida ainda era sua face, olhos e face para Malvina.
Também o professor Josué criticava, em seu foro íntimo, a infeliz ideia do coronel Coreolano Ribeiro, fazendeiro rico, de instalar na Praça, em rua onde moravam as melhores famílias, a dois passos da casa do coronel Melk Tavares, sua concubina tão apetecida e tão se oferecendo.
Fosse noutra rua qualquer, mais distante do jardim de Malvina, e ele poderia talvez arriscar-se numa noite sem lua para cobrar todas as promessas lidas nos olhos de Glória a chamá-lo, nos lábios entreabertos.
(Click na imagem de Malvina, filha do coronel Melk Tavares, por quem o professor Josué morre de amores)
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
Mais recentemente, o Vaticano falou sobre o "fogo" alertando que não devia ser entendido como um fogo que queima, um fogo real. Flexibilidade doutrinária?
Que sentido dar à palavra "respeito"? Com toda a probabilidade, será sinónimo de "medo".
sexta-feira, março 30, 2012
FAGNER (continuação)
"Foi com o espírito preservacionista e ao mesmo tempo renovador que surgiu no inicio dos anos setenta um grupo de cantores/compositores cearenses que se propunham divulgar seu trabalho artístico inserindo-o dentro dos padrões modernos de concepção musical. Essa geração liderada por Ednardo, Belchior e Fagner iria render excelentes frutos a musica popular brasileira. Raimundo Fagner vinha se destacando como compositor e intérprete nos meios estudantis da época.
Em 1971 sagrou-se campeão com a musica Mucuripe em parceria com Belchior no Festival do Centro de Estudos Universitários de Brasília, logo a seguir em 1972 estrearia em disco interpretando-a num compacto simples do Disco de Bolso da Revista Pasquim e alcançaria muito sucesso ao ser gravada na mesma ocasião por Elis Regina. O caminho do primeiro LP estava traçado e Fagner o gravaria em 1973, dando-lhe o título de Manera fru fru manera, nome de uma canção com o parceiro Ricardo Bezerra e que havia alcançado o sexto lugar no Festival de Brasília.
Rompendo com o tradicionalismo nordestino, mas mantendo-lhe o espírito Fagner incorpora neste seu primeiro disco uma linguagem modernizante onde não faltam as guitarras, uma certa influencia iê iê iê dos anos sessenta, um lirismo emepebista tradicional unindo a praia de Iracema com Copacabana e revisitando o folclore regional com uma nova postura estética proporcionando um novo rumo a musica do Nordeste distanciando-a do preconceito que a via apenas com o tradicional forró de Jackson do Pandeiro e o Baião de Luiz Gonzaga. Fagner emoldura numa nova concepção o tradicional e leva os ares de uma renovação musical nordestina ao resto do país, dando o pontapé inicial para o surgimento de outros artistas que irão trilhar o mesmo caminho, como por exemplo, Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho.
Sua voz agreste e suave causa espanto e admiração e o repertório do disco é uma demonstração de sua visão do Nordeste e do Brasil numa tentativa de definir um regionalismo plural, mas sem perder a essência.O repertório é formado por algumas canções que fizeram muito sucesso como as citadas Mucuripe e Manera fru fru manera, O ultimo pau de arara, de Venâncio e Corumbá, Canteiros, cuja letra traz trechos do poema Marcha, de Cecília Meireles." (continua)
(Luís Anérico Lisboa Junior)
RAIMUNDO FAGNER - O ÚLTIMO PAU DE ARARA
Mário Soares (continuação)
Não. Eu achava que o Spínola era um grande cabo de guerra, um grande chefe militar. Mas não era um político. Era um homem muito influenciável. Quanto ao Costa Gomes, nunca o percebi muito bem. Era um homem de muita argúcia. De grande inteligência, mas também de alguma ambiguidade. Contudo, no 25 de Novembro, portou-se bem. Foi ele que convenceu o Cunhal a desistir. Contou as espingardas e percebeu que os partidários do poder popular (comunistas e esquerdistas) estavam perdidos.
Sempre achei que gostava mais do Spínola...
Do ponto de vista afectivo, sem dúvida. Mas do ponto de vista intelectual, eu tinha um bom entendimento com Costa Gomes. Era um homem inteligente, como disse, pouco falador, muito reflexivo e muito ambíguo. Nunca se sabia de que lado estava...
Mas acha que foi Costa Gomes que evitou a guerra civil?
Não tenho dúvidas que contribuiu bastante. Ele esteve metido quase até ao último minuto, mas quando viu que nós tínhamos muito maior força militar... O Porto e todo o Norte era nosso, Cortegaça e toda a aviação estavam connosco. Tínhamos um petroleiro inglês em frente a Leixões, para abastecer de gasolina todos os aviões que tinham ido com o Lemos Ferreira para Cortegaça. Os radicais não tinham aviões. Tinham pára-quedistas, algumas forças mais ou menos dispersas. Nós tínhamos os comandos, com Jaime Neves, alguns quartéis em Lisboa. Eles julgavam que tinham os fuzileiros, mas os fuzileiros e a Marinha declararam-se neutrais. A partir daí perceberam que não tinham força militar para nos fazer frente...
Porque é que a direita reclama a vitória do 25 de Novembro? Só vejo lá pessoas de esquerda, o senhor, Melo Antunes, Vasco Lourenço...
Pois claro. A direita só contou em Braga. Foi o PS que organizou todas as manifestações. A direita andava fugida, silenciosa e alguns iam às nossas manifestações. Vi lá pessoas de extrema-direita que eu conhecia, de punho erguido a dizer: "PS, PS!". E há outra coisa muito importante no 25 de Novembro: a neutralidade do Otelo que nunca gostou dos comunistas, mas era esquerdista e era manipulado por aquele grupo da Isabel do Carmo e do Carlos Antunes. Mas era uma pessoa que tinha um certo bom senso, ao contrário do que dizem. Tanto que, uma vez, num comício que nós fizemos no dia 2 de Maio de 1975, que foi a nossa arrancada para a rua, depois de não nos terem deixado entrar no estádio 1.o de Maio e nos expulsaram da tribuna, ao Zenha e a mim, apesar de ambos sermos ministros do Governo... Nessa altura, houve alguém que começou a gritar: "A foice e o martelo na cabeça do Otelo!" Eu fiquei incomodado. Estava na janela da sede do Partido (hoje FAUL) a discursar quando eles começaram a berrar esse slogan. E eu disse:
- "Camaradas, não se enganem de direcção! O Otelo é um epifenómeno, não é nosso inimigo!" Nunca foi, de resto.
Agora, nesta campanha eleitoral para as legislativas, fez uma espécie de passagem de testemunho a José Sócrates, com aquele "Sócrates é fixe", no comício do Porto. Acha que é o seu herdeiro no PS?
Não. Não tenho a pretensão de ter herdeiros. Quis dizer apenas que Sócrates era o homem que tinha a legitimidade para ganhar as eleições, porque representava o PS. E que, em momento de crise, no meu entender, era preciso para o país que ganhasse.
Mas nunca fez isso a nenhum líder anterior do PS...
Não, porque também nunca houve uma possibilidade tão grande de perder as eleições... Quis dar a contribuição máxima que podia dar.
(continua)
GABRIELA
Episódio Nº 61
Dizia tudo aquilo tranquilamente, como se as noites dormidas juntos não contassem, como se apenas se conhecessem.
- Mas, Gabriela…
Nem sabia como responder-lhe, esquecia os argumentos, também os insultos, a vontade de bater-lhe para ela aprender que com um homem não se brinca. Só conseguia dizer:
- Tu não gosta de mim…
- Foi bom a gente ter-se encontrado, a viagem encurtou.
- Tu não quer mesmo que eu fique?
- Pra quê? Pra passar necessidade? Num vale a pena. Tu tem tenção, vai cumprir teu destino.
- E tu qual é tua tenção?
- Quero ir prò mato, não. O resto só Deus sabe.
Ele ficou silencioso, uma dor no peito, vontade de matá-la, de acabar com a própria vida antes que a viagem terminasse. Ela sorriu:
- Importa não, Clemente.
Da Tentação na Janela
A casa de Glória ficava na esquina da praça e Glória debruçava-se à tarde na janela, os robustos seios empinados como numa oferenda aos passeantes.
Uma e outra coisa escandalizavam as solteironas que vinham para a Igreja e davam lugar aos mesmos comentários, cada dia, na hora vespertina da prece:
- Falta de vergonha…
- Os homens pecam até sem querer. Só de olhar.
- Até os meninos perdem a virgindade dos olhos…
A áspera Doroteia, toda em negro de virginal virtude, atrevia-se a murmurar em santa exaltação:
- Também o coronel Coriolano podia botar casa para a rapariga numa rua de canto. Vem e planta com ela na cara das melhores famílias da cidade. Bem no nariz dos homens…
- Pertinho da Igreja. Isso até ofende a Deus…
Do bar, repleto a partir das cinco da tarde, os homens alongavam os olhos para a janela de Glória do outro lado da praça. O professor Josué, de gravata borboleta azul com pintas brancas, o cabelo reluzente de brilhantina e as cavadas faces de tísico, alto e espigado (“como um triste eucalipto solitário” definira-se a ele num poema), um livro de versos na mão, atravessava a praça e tomava pela calçada de Glória.
Na esquina, do fundo da praça, no centro de um pequeno jardim bem cuidado de rosas-chá e açucenas, com um jasmineiro à porta, elevava-se a casa nova do coronel Melk Tavares, objecto de profundas e agras discussões na Papelaria Modelo.
Era uma casa em “estilo moderno”, a primeira a ser construída pelo arquitecto trazido por Mundinho Falcão, e as opiniões da intelectualidade local se haviam dividido, as discussões eternizavam-se. Em suas linhas claras e simples, contrastava com os sobradões pesados e as casas baixas, coloniais.
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
Cerca de 200 anos antes de Jesus, havia uma crença popular de que lá estaria situado num inferno de fogo para os condenados pelas suas más acções. Por ser um lugar desacreditado e maldito, o vale estava destinado a ser a lixeira pública de Jerusalém.
Este "sheol" é mencionado 65 vezes no Antigo Testamento, sempre como um lugar triste, onde não há esperança de mudança Os babilónios também acreditavam num lugar semelhante. Esta ideia surge no livro de Apocalipse . O dogma do inferno deve-se mais às crenças de alguns povos da antiguidade e suas filosofias do que aos textos bíblicos.
quinta-feira, março 29, 2012
“O Brasil é um país singular onde se misturam vários povos vivendo em harmonia, possui uma das mais miscigenadas populações do planeta, uma língua uniforme em que pese a vastidão de seu território e uma diversidade cultural das mais ricas. Durante toda nossa história convivemos com essas diferenças e conseguimos manter uma invejável unidade, por outro lado, é de admirar a maneira pela qual o país assimila a sua diversidade cultural respeitando as suas identidades regionais.
De norte a sul, passando pelo centro oeste percebemos a imensidão de ritmos, gêneros musicais, festas, folguedos, enfim todo um cenário que se descortina aos nossos olhos e que nos fazem ficar admirados como podemos assimilar tantas manifestações e incorporá-las ao nosso cotidiano. Da tradição dos pampas gaúchos, passando pelo caipira do interior do estado de São Paulo, pelas manifestações dos imigrantes incorporadas ao nosso calendário e aculturadas em nosso território, a sonoridade das Minas Gerais, a cultura pantaneira, o samba e o choro carioca, o samba de roda na Bahia, o frevo em Pernambuco, o coco no Rio Grande do Norte e em outros estados nordestinos e desaguando na canção amazônica com suas lendas e tradições embaladas também pelo ritmo do carimbó, temos ai demonstrado em linhas gerais a riqueza de nossa cultura infelizmente pouco conhecida e divulgada principalmente em nossas escolas." (Luís Américo Lisboa Junior) - continua.
Mário Soares
Foi espontâneo. Nos meses que antecederam o 25 de Abril tivemos duas conversas formais entre o PS e o PCP, para fazermos uma espécie de "união de esquerda", à francesa. Não chegámos a acordo quanto à união de esquerda, mas acordámos numa certa cooperação. Senti- -me obrigado a ir esperar o Cunhal. Fi- -lo, aliás, com gosto.
Mas ficou aborrecido ali com algumas coisas...
Pois fiquei! Eu abracei-o sinceramente e percebi que ele estava hirto e ficou visivelmente incomodado com a minha presença. Quando saímos, o aeroporto estava cheio de militantes do PCP, havia um tanque cá fora, que o PC tinha mandado pôr. Uma encenação. E então Cunhal resolveu subir para o tanque e começar a fazer um discurso às massas. Foi o primeiro discurso que fez a seguir ao 25 de Abril, em 30 de Abril, dia em que chegou. Houve um comunista que me empurrou para cima do tanque, eu não queria subir. Mas o mesmo tipo depois veio buscar-me, afinal não era para eu estar ali.
Ficou logo de pé atrás...
Fiquei, confesso. Quando foi o 1 de Maio de 1974, o PC estava à frente, com a Intersindical - e o PS muito atrás. Um membro do Partido Comunista veio dizer-me para eu ir para a frente, para o pé do Álvaro Cunhal. Fui. Quando chegámos à tribuna perguntei qual era a ordem dos discursos. Disseram-me que o último era o Cunhal. Perguntei: "Porquê?" E o dirigente da Intersindical respondeu-me: "Fala em último porque é o mais velho." (risos)
Antes do discurso do Cunhal?
(continua)
GABRIELA
CRAVO
E
Então Clemente a viu órfã e só, necessitada e triste. Pela primeira vez pensou compreendê-la. Nada mais era do que uma pobre moça, quase menina ainda, a quem proteger.
Aproximou-se e longamente falou dos seus planos. Muito lhe tinham contado daquela terra do cacau para onde iam. Sabia de gente que saíra do Ceará sem tostão e voltara poucos anos depois a passeio, arrotando dinheiro. Era o que ele ia fazer.
Queria derrubar mata, ainda existia alguma, ter terra sua, ganhar bastante. Gabriela iria com ele e, quando aparecesse um padre por aquelas bandas, casariam. Ela fez que não com a cabeça, agora não ria seu riso de mofa; disse apenas.
- Vou pró mato não, Clemente.
Outros morreram e os corpos ficaram pelo caminho, pasto dos urubus. A caatinga acabou, começaram as terras férteis, as chuvas caíram.
Ela continuava a deitar-se com ele, a gemer e a rir, a dormir recostada sobre seu peito nu. Clemente falava cada vez mais sombrio, explicava as vantagens, ela apenas ria e balançava a cabeça numa renovada negativa.
Certa noite ele teve um gesto brusco, atirou-a para um lado num repelão:
- Tu não gostas de mim!
De súbito, saído não se sabe de onde, o negro Fagundes apareceu, a arma na mão, um brilho nos olhos.
- Gabriela disse:
- Foi nada não, Fagundes.
Ela havia batido contra o tronco da árvore junto ao qual estavam deitados. Fagundes baixou a cabeça, foi embora.
Gabriela ria, a raiva foi crescendo dentro de Clemente. Aproximou-se dela, tomou-lhe dos pulsos, ela estava caída sobre o mato, o rosto ferido:
- Tenho até vontade de te matar e a mim também…
- Porquê?
- Tu não gostas de mim…
- Tu é tolo…
- Que é que vou fazer, meus Deus?
- Importa não… - disse ela e o puxou para si.
Agora, naquele último dia de viagem, desnorteado e perdido, ele terminara por se decidir. Ficaria em Ilhéus, abandonaria seus planos, a única coisa importante era estar ao pé de Gabriela.
- Já que tu não quer ir vou arranjar jeito de ficar em Ilhéus. Só que não tenho ofício; além de lavrar terra não sei fazer um nada…
Ela tomou-lhe a mão num gesto inesperado, ele sentiu-se vitorioso e feliz.
- Não, Clemente, fique não. Pra quê?
- Pra quê?
- Só pra te ver, pra gente estar junto.
- E se a gente não puder se ver? É melhor não, tu vai pra teu lado, eu vou pró meu. Um dia, pode ser, a gente se encontra outra vez. Tu feito homem rico, nem vai me reconhecer.
ENTREVISTA FICCIONADA COM
JESUS CRISTO Nº 44 SOBRE O TEMA:
RAQUEL – A nossa unidade móvel passou para o sul da cidade de Jerusalém ... Este desfiladeiro é conhecido como o vale da Gehenna. Estamos juntos, tal como nos dias anteriores, de Jesus Cristo, que andou por estes lugares quando eles não eram tão populosos como agora.... Como vê isto, muito mudado?
JESUS – Muitíssimo, Raquel. Jerusalém, era, então, muito pequena ... Toda ela cabia dentro das muralhas. E aqui fora era o despejo.
RAQUEL - O despejo?
JESUS - Sim, a lixeira da cidade. Vês aquela porta? No meu tempo era chamado o Portão do Lixo. Os vizinhos vinham junto à noite e jogavam fora restos de comida, galhos mortos, animais mortos… depois, cobriam de enxofre e deitavam fogo e era um mar de labaredas.
RAQUEL – Os nossos ouvintes, com essa descrição vão-se lembrar do inferno...
JESUS – Tu o disseste. Deste lixo a arder nasceu essa mentira do inferno. E agora, vendo o que eu estou vendo nestes dias, eu percebo que esse foi o maior dano feito para aos filhos e filhas de Deus.
RAQUEL – Qual foi essa mentira tão prejudicial?
JESUS – O inferno.
RAQUEL - Mas não foi o senhor mesmo que pregou sobre o inferno?
JESUS - Eu pregava o amor de Deus.
RAQUEL – Talvez se tenha esquecido, mas o senhor, repetidamente, se referiu a "choro e ranger de dentes" que haveria no inferno…
JESUS – É que quando me indignava vendo tantas injustiças, eu dizia: É melhor entrar mutilado, coxo ou cego no Reino de Deus e não que te queimem inteiro nesta fogueia de Gehenna. Eu estava a referir-me a este braseiro e não ao inferno…
RAQUEL - Seja como for, por que diz o senhor que o inferno é ... a maior das mentiras?
JESUS – Porque não existe e jamais existiu.
RAQUEL – O senhor já percebeu o que está a dizer?
JESUS – Claro que percebo.
RAQUEL - Só um minuto, senhor Jesus Cristo . Se minha informação está correcta, a crença no inferno é uma obrigação de fé. Eu tenho isso... Foi no Ano de 1123, no Concílio de Latrão e, mais recentemente, disse o Papa Bento XVI.
JESUS – Pois bem, eu digo o contrário. Não posso acreditar ao mesmo tempo em Deus e no inferno.
RAQUEL - Por quê?
JESUS - Porque Deus é amor. Como podes pensar que Deus tem preparado um calabouço de tortura, um lugar de tormento eterno, para punir seus filhos desobedientes? Esse não seria Deus, quando muito Herodes.
RAQUEL - Então, Deus não pune os pecadores?...
JESUS – Deus é como aquele pai que tinha dois filhos. Um deles era bom, cumpridor, o outro, um velhaco. Mas ao fim, o pai recebeu os dois, tanto o bom como o pródigo.
RAQUEL - E tanto canalha que há neste mundo… os que montam as guerras, os que matam inocentes, aqueles que torturam ... vão ficar impunes?
JESUS - Deixa nas mãos de Deus a resolução desse problema. Ele saberá o que fazer. Mas tu, quando o teu coração te manda condenar, não penses em nenhum inferno. Lembra-te que Deus é maior que o teu coração e entende tudo.
RAQUEL - Que diz o nosso público, há ou não há inferno, existe ou não punição eterna? O tema é quente e eu acho que Jesus Cristo ainda não disse tudo. Fique connosco.
quarta-feira, março 28, 2012
Uma velhinha morre e ao chegar ao Céu pergunta ao guardião dos portões:
- Porque é que existem duas portas, uma azul e outra vermelha...?
São Pedro então, responde:
- A azul leva ao Céu, a vermelha desce ao Inferno, pode escolher...!
Nisto, ouve-se uma gritaria e o barulho de um berbequim atrás da porta azul.
- Mas o que é isto...? - pergunta a velhinha.
- Nada, é uma alma que acabou de chegar e estão a furar-lhe as costas
para pôr as asas...
A velhinha fica indecisa quando, de repente, ouve-se nova gritaria atrás da porta azul.
- E esta gritaria o que é...???
- Nada, é que estão a furar a cabeça da alma para pôr a auréola...
- Que horror...! Eu não quero ir para o Céu, vou para o Inferno...!
- Mas lá o Diabo costuma violar todas as mulheres...
- Quero lá saber... pelo menos os buracos já estão feitos...!
Mário Soares (continuação)
E o que é que fazia? Escrevia, lia?
Pensava e dormia. Não tinha livros nem papel. Sempre bem. Apesar da enxerga e da falta de condições. Não tinha ainda 40 anos!
Nem sequer lhe deixaram ler a Bíblia?
Doutra vez, sim. Em Caxias, antes de ir deportado para São Tomé, sem julgamento e por tempo indeterminado. Reclamei a Bíblia porque sabia que não deixavam passar outros livros. Invoquei a qualidade católica do regime. Mas não tive muito tempo, para a ler...
Como é que lhe chega às mãos o escândalo dos "Ballet Rose"?
O meu escritório de advogados era na rua do Ouro, 87, 2.o andar. Entra-se por uma ourivesaria que se chama Salgado. Ainda existe. O escritório era do meu amigo Soromenho e do Pimentel Saraiva, dois advogados, muito mais velhos do que eu. Não era um escritório de advogados, como agora. Cada um pagava a sua parte da renda e cada um fazia a sua vida independente. Naquele tempo era assim. Comecei a fazer a minha vida e relacionei-me muito com aquela gente toda da Boa-Hora. Conhecia os escrivães, os advogados, os juízes, o Ministério Público, toda a gente. Sou expansivo, como sabe, não tinha dificuldade nenhuma em conhecer e confraternizar com as pessoas que, geralmente, se abrem comigo. Um belo dia estava na Boa-Hora e apareceu-me um escrivão que me disse:
Eram jornalistas e eram seus amigos pessoais? Uma rede que se amplificou quando esteve exilado em Paris?
Sim, eram jornalistas internacionais, correspondentes em Lisboa mas viajavam muito e tinham conhecimentos e apresentaram-me. Em Portugal, quase não tinham notícias - só propaganda - e a única pessoa que lhes dava notícias era eu! Os membros das embaixadas vinham falar comigo, ao meu escritório. Os americanos nunca vinham ao meu escritório, mas marcavam reuniões comigo no jardim do Campo Grande.
A esse jornalista do "Sunday Times" nunca o tinha visto na minha vida. Disse-me que queria saber o que era isso do escândalo dos Ballet Rose, tinha vindo ter comigo porque eu era informado, ia muito ao tribunal da Boa-Hora. Disse-lhe que só tinha uns zunzuns, mas que podia apresentá-lo a um escrivão que poderia dar-lhe mais informação. Mas disse-lhe logo:
E o regime ia caindo...
Não ia caindo, mas ficou um bocado abalado. No plano moral. Quando se soube, começou tudo a perguntar "de onde é que isto vem..." E como a PIDE tinha visto um jornalista estrangeiro a entrar no meu escritório, prenderam-me, acusando-me de ter dado a notícia. Eu respondi sempre que não. Nunca disse mais nada senão isso. Eles não tinham nada, nenhuma prova. Oito dias depois de eu estar preso, o jornalista escreveu uma matéria no "Sunday Times", a dizer que era uma pouca-vergonha, "a minha fonte não é esse senhor, isto é eu vi-o, mas ele não me disse nada, porque não sabia nada". Confirmou a minha tese e a PIDE ficou na dúvida e, pelo sim e pelo não, puseram-me na rua. Salazar não gostava de brincar com os ingleses...
(continua)
GABRIELA
Quando, no início da viagem, os grupos se encontraram, logo reparou na moça. Ela vinha com um tio, acabado e doente, sacudido o tempo todo pela tosse. Nos primeiros dias ele a observara de longe, sem coragem sequer para aproximar-se. Ela ia de um para outro, conversando, ajudando, consolando.
Nas noites da caatinga, povoadas de cobras e de medo, Clemente tomava da harmónica e os sons enchiam a solidão. O negro Fagundes contava histórias de valentias, coisas de cangaço, andara metido com jagunços, matara gente.
Punha em Gabriela uns olhos pesados e humildes, obedecia-lhe pressurosamente quando ele lhe pedia que fosse buscar uma lata com água.
Clemente tocava para Gabriela, mas não se atrevia a dirigir-lhe a palavra. Foi ela quem veio, certa noite, com seu passo de dança e seus olhos de inocência para junto dele, puxar conversa. O tio dormia numa agitação de falta de ar, ela encostou-se numa árvore. O negro Fagundes narrava:
- Tinha cinco soldados, cinco macacos que a gente comeu na faca para não gastar munição…
Na noite escura e assustadora, Clemente sentia a presença vizinha de Gabriela, não se animava sequer a olhar para a árvore à qual ela se encostara, um umbuzeiro. Os sons morreram na harmónica, a voz de Fagundes ressaltou no silêncio. Gabriela falou baixinho:
- Não pare de tocar senão vão arreparar.
Atacou uma melodia do sertão, estava com um nó na garganta. A moça começou a cantar em surdina. A noite ia alta, a fogueira morria em brasas, quando ela deitou-se junto dele como se nada fora. Noite tão escura, quase não se viam.
Desde aquela noite milagrosa, Clemente vivia no terror de perdê-la. Pensara a princípio que, tendo acontecido, ele já não a largaria, iria correr sua sorte nas matas dessa terra do cacau. Mas logo se desiludiu. Durante a caminhada ela se comportava como se nada houvesse entre eles, tratava-o da mesma maneira que aos demais.
Era de natural risonha e brincalhona, trocava graças com o negro Fagundes, distribuía sorrisos e obtinha de todos o que quisesse. Mas quando a noite chegava, após ter cuidado do tio, vinha para o canto distante onde ele ia meter-se e deitava-se a seu lado, como se para outra coisa não houvesse vivido o dia o dia inteiro. Se entregava toda abandonada nas mãos dele, morrendo em suspiros, gemendo e rindo.
No outro dia, quando ele, preso a Gabriela como se ela fosse sua própria vida, queria concretizar os planos de futuro, ela apenas ria, quase a mofar-se dele, e ia embora ajudar o tio, cada vez mais fatigado e magro.
Uma tarde tiveram que parar o caminho, o tio de Gabriela estava nas últimas. Vinha cuspindo sangue, não aguentava mais andar. O negro Fagundes jogou-o nas costas como um fardo e o carregou durante um pedaço do caminho. O velho ia arfando, a Gabriela a seu lado.
Morreu de tardinha, botando sangue pela boca: os urubus voavam sobre o cadáver.
(Click na imagem da Gabriela que, chegada do sertão a Ilhéus, admira um dos poucos automóveis existentes na cidade.)
INFORMAÇÕES ADICIONAIS À ENTREVISTA
Nº 43 Sobre O TEMA: “JESUS E A SIDA” (6)
A doença mais temida: a Lepra
No tempo de Jesus era a lepra a doença tabu. A lepra, era então, a coisa mais próxima ao que, na nossa época, é a SIDA tanto para os doentes, que foram excluídos, como para a sociedade, que os temiam e rejeitava.
As leis religiosas interpretavam a lepra como um castigo de Deus e ordenou aos leprosos que se separassem das suas famílias e vivessem em comunidade isolados em cavernas. Quando circulavam nas estradas teriam de gritar ou tocar sinos para avisar as pessoas saudáveis nas proximidades.
Como uma doença temida era crença popular de que a lepra desapareceria com a chegada do Messias.
Que Jesus se aproximou dos leprosos e os tocava foi mais do um sinal de compaixão e simpatia, foi uma rejeição voluntária de uma lei religiosa que ele considerava desumana e injusta. A Lei religiosa tornava culpado todo aquele que tocasse era ninguém um impuro (Levítico 5, 2-4). Assim, o ato de Jesus, foi revolucionário.
terça-feira, março 27, 2012
O Tobé é um vendedor de colchões e roupa interior na Feira do Relógio.
Um dia, ele chega a casa e diz à sua mulher:
- Tens de começar a ir trabalhar, amor. Olha para mim: hoje vendi 3 colchões e 20 cuecas e ganhei 600 Euros.
Responde ela:
- Olha, Tobé ... Eu, sem sair de casa, só com um colchão e sem cuecas fiz 800 Euros.
Mário Soares (continuação)
Mais tarde houve uma pessoa que veio ter comigo, mandada pela direcção do partido - do P como eles diziam - para me tentar convencer a voltar para o Partido. Disse-lhe que nem pensar nisso! Mas muito depois disso, já eu era advogado, com algum nome, defendi no plenário gente de todas as orientações ideológicas - e outro dirigente do Partido, que eu conhecia bem, veio falar comigo em termos conspirativos.
Estavam preocupados porque o general Delgado tinha de ser operado na Checoslováquia. Era uma coisa séria, tinham medo que ele morresse. E como eu já tinha uma reputação de não comunista, pediram- -me que fosse ver o general Delgado, à Checoslováquia. Para poder testemunhar em caso de necessidade. "Mas como é que eu vou à Checoslováquia?", perguntei. "Isso é connosco.
Vais até à Itália, apresentas-te numa embaixada que te vamos dizer - era Cuba - eles dão-te um passaporte falso e ensinam-te como é. "Fui, foi a primeira vez que entrei num país do Leste Europeu. Deram-me um passaporte, era o senhor Díaz, espanhol, mas com a minha cara e as minhas impressões digitais. E só utilizava o passaporte a partir de Zurique. Até à Itália fui com o meu passaporte português." Perguntei-lhes: "E então em Praga?" "Em Praga não temos problemas, chegas lá e há um tipo com dois metros de altura que está a atender as pessoas, toda a gente o vê, não podes deixar de o ver. Diz-lhe que és o senhor Díaz."
Assim fiz. Ele levou-me a um tipo do PCP que estava do outro lado, já passada a fronteira, que me depositou num hotel e me disse que devia sair o menos possível. Não cumpri. Depois fui ver o general, que estava muito doente, muito em baixo. Quando me viu ficou entusiasmado! Mandou vir champanhe da Crimeia para celebrarmos. Eu tinha sido da campanha dele, na qualidade de não comunista...
Na qualidade de antifascista... Sim. Tinha entrado no chamado Directório Democrático-Social, contra a vontade de muitos amigos meus, que achavam que era demasiado de direita. Mas eu disse-lhes que era o preço que tinha a pagar para fazer a actividade permanente antifascista e antiditadura que nunca deixei de fazer, sem ser preso continuamente. Os meus amigos acabaram por se convencer que não me fez mal nenhum ter estado no Directório. Os comunistas acusaram-me de ser de direita, burguês, anticomunista. Mas isso não tinha importância nenhuma, quanto mais dissessem melhor...
Disseram-no depois muitas vezes... Isso até era bom, só me dava vantagens.
Fui lá ver o general Delgado - o único que teve a coragem de o visitar em Praga. Ficou radiante. Chamava-me "o homem dos barbas". Tinha ciúmes do Jaime Cortesão e do Azevedo Gomes, porque eles eram, para mim, as grandes figuras de referência da oposição. Eram os nossos mestres. Eu reconhecia os dois como mestres e inspiradores.
O Humberto Delgado acordou tarde para a política...
Delgado, em jovem, era fascista! Escreveu um manual da Legião Portuguesa! Durante a guerra civil espanhola esteve do lado dos franquistas. Só mudou na América, depois da guerra. Como o Henrique Galvão, aliás.
Então ele disse-me: "Você é um homem dos barbas, mas eu sempre gostei de si." "Senhor General, eu ajudei-o imenso, na sua Candidatura. Estou aqui para lhe dizer que estou disposto a continuar a ajudá-lo, se precisar de alguma coisa. Sabe que eu não sou comunista." E ele disse: "Estou rodeado desses tipos! Vim, para aqui, estive quase à morte, mas trataram-me bem. Não vou morrer. Ainda terei tempo para vencer o Salazar!" Era um personagem de grande coragem e muito espontâneo.
Uma das suas prisões mais violentes foi quando denunciou o escândalo dos "Ballet Rose". Foi em Dezembro de 1967. Como é que soube do caso?
Fez-me passar o Natal e o Ano Novo em Dezembro de 1967 na cadeia! Puseram--me na rua depois, porque eu requeri o Habeas Corpus. Foi o primeiro Habeas Corpus requerido. O tribunal deu-me razão e tiveram de me pôr na rua. Tinha passado um frio horroroso, havia imensa humidade nas paredes, não havia suficientes mantas. Eu estive completamente isolado em Caxias.
Foi torturado nessa altura?
Nunca fui torturado, fisicamente. Isto é, nunca me bateram.
Mas sofreu a tortura do sono?
(continua)
GABRIELA
CRAVO
E
CANELA
Clemente ia carregado. Além dos seus haveres – a harmónica e um saco de pano cheio pela metade – levava a trouxa da Gabriela. A marcha era lenta, iam velhos entre eles, e mesmo os moços estavam no limite da fadiga, não podiam mais. Alguns quase se arrastavam, sustentados apenas na esperança.
Só Gabriela parecia não sentir a caminhada, seus pés como que deslizando pela picada muitas vezes aberta na hora a golpes de facão, na mata virgem.
Como se não existissem as pedras, os tocos, os cipós emaranhados. A poeira dos caminhos da caatinga a cobrira tão por completo que era impossível distinguir seus trapos. Nos cabelos já não penetrava o pedaço de pente, tanto pó se acumulara.
Parecia uma demente perdida nos caminhos. Mas Clemente sabia como ela era deveras e o sabia em cada partícula do seu ser, na ponta dos dedos e na pele do peito. Quando os dois grupos se encontraram no começo da viagem, a cor do rosto de Gabriela e de suas pernas era ainda visível e os cabelos rolavam sobre o cangote, espalhando perfume.
Ainda agora, através da sujeira a envolvê-la, ele a enxergara como a vira no primeiro dia, encostada a uma árvore, o corpo esguio, o rosto sorridente, mordendo uma goiaba.
- Tu parece que nem veio de longe…
Ela riu:
- A gente está chegando. Tá pertinho. Tão bom chegar.
Ele fechou ainda mais o rosto sombrio:
- Não acho não.
- E porque tu não acha? – Levantou para o rosto severo do homem seus olhos, ora tímidos e cândidos, ora insolentes e provocadores – Tu não saíu para trabalhar no cacau, ganhar dinheiro? Tu não fala noutra coisa.
- Tu sabe porquê – resmungou ele com raiva – Pra mim esse caminho podia durar a vida toda. Num me importava…
No riso dela havia certa mágoa, não chegava a ser tristeza, como se estivesse conformada com o destino:
- Tudo o que é bom, tudo o que é ruim, também termina por acabar.
Uma raiva subia dentro dele, impotente. Mais uma vez, controlando a voz, repetia a pergunta que lhe vinha fazendo pelo caminho e pelas noites insones:
- Tu não quer mesmo ir comigo para as matas? Botar uma roça, plantar cacau junto de nós dois? Com pouco tempo a gente vai ter roçado seu, começar a vida.
A voz de Gabriela era cariciosa:
- Já te disse minha tenção. Vou ficar na cidade, não quero mais viver no mato. Vou me contratar de cozinheira, de lavadeira ou para arrumar casa dos outros…
Acrescentou numa lembrança alegre:
- Já andei de empregada em casa de gente rica, aprendi a cozinhar.
- Aí tu não vai progredir. Na roça comigo, a gente ia fazendo seu pé-de-meia, ia tirando para a frente…
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
- “Devem elevar-se para outro nível e lançarem-se as verdadeiras raízes sociais, económicas, políticas e morais da epidemia”
Esta posição é partilhada e pela ONUSIDA. Dada a gravidade da epidemia, houve uma aproximação de posições entre as instâncias internacionais e o Vaticano. A Cáritas Internacional tem desempenhado um papel importante neste processo.
Robert Vitillo, um sacerdote do E.U. e um dos presidentes do Grupo de Trabalho sobre a SIDA da Caritas Internacional, diz:
Mas, assim como a Igreja Católica tem influenciado as mensagens de saúde pública sobre a SIDA, a epidemia continua a desafiar a Igreja Católica de hoje para falar com franqueza sobre os direitos sexuais e os aspectos antropológicos e éticos da sexualidade.
segunda-feira, março 26, 2012
(click na imagem e aumente)
Mário Soares (continação)
Sempre teve cuidado com os telefones?
Sempre! Eu estive preso 12 vezes! Nunca me apanharam um papel! Tinha cuidados, era disciplinado nessa matéria. Nesse dia almocei com o Barradas, tomei banho em casa dele, fiz a barba, vesti- -me, ele tinha-me ido buscar o fato e as camisas. E fui para a Boa-Hora onde estava a ser julgado, por causa do MUD Juvenil, de outra prisão anterior. Estavam lá o Zenha e todo o grupo da direcção do MUD Juvenil. Entrei na Boa-Hora, os tipos da PIDE caíram-me em cima e levaram-me preso para a sede. Para o Aljube e depois para a Penitenciária. Estive ali preso algum tempo. E, entretanto, foi preso também o Cunhal, no Luso.
Estiveram juntos na prisão?
Não, nunca estivemos juntos, mas estivemos presos no mesmo sítio, a Penitenciária. Em celas individuais e afastadas. Nunca o vi. Soube por um guarda que ele estava lá. A PIDE tinha-lhe apreendido imensos relatórios na casa onde Cunhal foi preso. Inclusivamente notas que eu tinha enviado ao Secretariado. Mas eu nunca assinei com o meu nome, tinha um pseudónimo.
Qual era o seu pseudónimo no PCP?
O meu era Fontes. Mais tarde, para escrever nos jornais estrangeiros, usei: Carlos Fontes. Tínhamos uma direcção da juventude comunista, onde estava o Octávio Pato, um ex-prisioneiro saído do Tarrafal e eu. Um dia estávamos numa reunião em casa do pai de um camarada nosso, na avenida Fontes Pereira de Melo. Tínhamos a tarefa de arranjar pseudónimos. Eu disse: "É simples. Estamos aqui na Fontes Pereira de Melo. Eu sou Fontes, tu, Octávio, és o Melo e este (não me lembro do nome) és o Pereira". Assim ficou. Conto-lhe, a propósito, quanto ao pseudónimo uma história engraçada. Há um grande escritor mexicano, que se chama Carlos Fuentes. Somos amigos. Um dia na Embaixada do México em Bruxelas, encontramo-nos numa cerimónia. E o embaixador, um nosso amigo comum, Muñoz Ledo, contou-lhe do meu pseudónimo. No seu discurso Fuentes, contou a história e rematou assim: "As coisas no México não vão bem, se tiver de passar à clandestinidade, refugio-me na Europa, com o pseudónimo de Mário Soares..."
E trocava mensagens com o Cunhal, na prisão?
Não, nem pensar. Só voltei a ver o Cunhal um ano e tal depois, já eu estava em liberdade, a estudar Direito. Vi-o quando fui com o Zenha e a minha mulher e conseguimos entrar na sala de audiências, onde estava o Cunhal, como réu. Foi uma sessão fantástica! Fui lá cumprimentá- -lo, apesar de nessa altura eu já não ser do Partido Comunista.
E aí encontrou-se com Álvaro Cunhal...
(continua)
GABRIELA
Episódio nº 57
Haviam pernoitado nas vizinhanças de um alambique, plantações de cana balançando ao vento. Um trabalhador lhe dera detalhadas explicações sobre o caminho a seguir: menos de um dia de marcha e estarão em Ilhéus, a viagem de temores terminada, uma nova vida a começar.
- Tudo quanto é retirante acampa perto do porto, prós lados da estrada de ferro, no fim da feira.
Num vai procurar trabalho? – perguntou o negro Fagundes.
-É melhor esperar, não demora e logo aparece gente pra contratar. Tanto para trabalhar nas roças de cacau ou na cidade…
- Também na cidade interessou-se Clemente, o rosto fechado, a harmónica no ombro, uma preocupação nos olhos.
- Inhô, sim. Pra quem tem ofício: pedreiro, carpina, pintor de casa. Tão levantando tanta casa em Ilhéus que é um desperdício.
- Só?
_ Tem ocupação também nos armazéns de cacau, nas docas
- Por mim – disse um sertanejo forte, de meia idade – vou é prás matas. Diz que um homem pode juntar dinheiro.
Faz tempo era assim. Hoje é mais custoso.
- Diz que um homem sabendo atirar tem boa aceitação… - falou o negro Fagundes passando a mão, quase numa carícia, sobre a repetição.
- Num tempo foi assim.
- E num é mais?
- Ainda tem a sua procura.
Clemente não tinha ofício. Labutara sempre no campo, plantar, roçar, e colher era tudo o que sabia. Ademais viera com a intenção de se meter nas roças de cacau, tinha ouvido tanta história de gente chegando como ele, batida pela seca, fugida do sertão, quase morta de fome, e enriquecendo naquelas terras em pouco tempo.
Era o que diziam pelo sertão, a fama de Ilhéus corria mundo, os cegos cantavam suas grandezas nas violas, os caixeiros viajantes falavam daquelas terras de fartura e valentia, ali um homem se arranjava num abrir e fechar de olhos, não havia lavoura mais próspera do que a do cacau.
Os bandos de emigrantes desciam do sertão, a seca nos seus calcanhares, abandonavam a terra árdua onde o gado morria e as plantações não vingavam, tomavam as picadas em direcção ao sul.
Muitos ficavam pelos caminhos, não suportavam a travessia de horrores, outros morriam ao entrar na região das chuvas onde o tifo e o paludismo, a bexiga, os esperavam. Chegavam dizimados, restos de famílias, quase mortos de cansaço, mas os corações pulsavam de esperança naquele dia derradeiro da marcha. Um pouco mais de esforço e teriam atingido a cidade rica e fácil. As terras do cacau onde dinheiro era lixo nas ruas.
INFORMAÇÕES ADICIONAIS À ENTREVISTA
A opção da libertação para os pobres, justiça, misericórdia, são categorias de abordagem bíblica e teológica para a SIDA e seus impactos na sociedade global em que vivemos hoje. Diante deste desafio, os teólogos de todo o mundo percebem que há uma falta de reflexão teológica.
domingo, março 25, 2012
HOJE É
(Da Minha Cidade de Santarém)
Recordo esta conversa como a abordagem mais importante sobre a homossexualidade que tive em toda a minha vida.
O cenário era a parada do R.I. 16 em Évora, ano de 1961, o contexto, uma recruta para preparar os soldados para a guerra de Angola recentemente iniciada: “…para Angola, Depressa e em Força! … dissera Salazar.
Quem se abria assim comigo era um soldado do meu pelotão de recrutas que nesse dia, por estar magoado num pé, não participava nos exercícios de “ordem unida” que estava a ser ministrada.
Distraído, como sempre, tinha sido o último a saber e apenas porque um dos cabos milicianos que dava a recruta comigo resolveu prestar-me a informação, com algum pudor e respeito próprio da época, sobre aquele soldado que estava à minha responsabilidade.
Os tempos eram outros e estas situações constituíam no fim da década de 50, princípios de sessenta, na sociedade fechada, cínica e confessional de Oliveira Salazar, autênticos “bichos-de sete-cabeças”, tantos os tabus e ignorância sobre elas.
Sentado ao meu lado, continuava a desabafar com toda a naturalidade e sinceridade. As palavras, simplesmente, saíam-lhe, percebendo-se através delas uma identidade feminina, sem tom de queixas, aversão ou ressentimento para quem quer que fosse. Os pais tinham-no expulso de casa logo em muito jovem e de toda a família apenas uma irmã, mais sensível, ainda o visitava, provavelmente às escondidas do resto dos parentes.
Trabalhava num restaurante como ajudante de cozinheiro e as conversavas que gostava de ter eram sobre namorados e vestidos, referindo-se a si sempre no feminino:
- “O meu Aspirante já viu o meu tormento a dormir numa camarata de homens e a tomar banho num balneário com eles todos nus”?
As perguntas secaram-se todas na minha garganta, também não estava preparado para ser interlocutor daquele desabafo, apenas soube o que ele me quis dizer, relatos naturais e espontâneos da sua vida, estranha e bisonha para mim, inexperiente nos meus 22 anos, recém-casado, desconhecedor das realidades de um mundo que era bem maior, complexo e intrigante que o meu universo heterossexual.
Ainda debaixo do efeito surpresa fui ter com o Capitão, Comandante da Companhia, Oficial do Quadro Permanente e pedi-lhe que diligenciasse para que aquele soldado fosse livre da tropa ao abrigo dos Regulamentos mas a resposta que obtive foi seca, brutal, desumana:
- “Qual quê, faz jeito aos soldados lá em Angola!”
Fiquei a perceber que ele estava destinado a cumprir dois objectivos para com a pátria: “carne para canhão” e “carne para a carne”.
- “Meu Aspirante, eu nasci assim, não tenho culpa”.
Claro que não tinha culpa mas eu nem tive coragem ou expediente para o reconfortar com palavras tão simples como estas:
- “Claro que não, não tiveste a culpa! …”
E no entanto, aquele jovem “sem culpa”, que se abrira para mim em palavras simples e sinceras e me destapou a verdade oculta por vergonha e pudor dos homens “macho”, a maioria dos quais não teria tido a sua força e coragem para sobreviver a tão profundas provações, estava a ser, por parte da família e da sociedade, vítima de um "assassinato" em vida, de uma destruição lenta que corrói a alma, a personalidade, a própria identidade, no mais injusto dos castigos apenas… “por ele ser assim”.
Não me interessa partir deste caso para a problemática dos direitos dos homossexuais e do longo e saudável percurso de mais de cinquenta anos percorridos ente nós desde aquele dia até hoje.
Ficou para mim aquele monólogo que nunca esqueci, na parada do Quartel do Regimento de Infantaria 16 em Évora, fazem, por estes dias, 51 anos.
Apenas relembrar esse jovem e desejar que ele tenha sobrevivido à guerra e à vida. Se o conseguiu, a uma e à outra, então é um herói.
(Click na imagem do Largo do Seminário, centro histórico da cidade de Santarém))