TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 240
- Que deseja beber? – pergunta o Magnífico após digerir a batida da porta.
- Acabei de tomar café, não quero mais nada, não precisa se incomodar.
- Também eu venho de tomar café. Para depois do café, para começar bem o dia, nous allons prendre une goutte de Napoléon, une fine, mon chére, você me dirá.
Em cima de uma mesa, variedade de garrafas. Escolhe uma delas. Que diabo é Napoléon une fine, pergunta-se Ascânio, tem muito o que aprender. Os copos grandes , bojudos, o esclarecem: isto ele conhece, são copos para conhaque. Mas nunca imaginou que o líquido dourado, colocado ao fundo, deva ser esquentado com as mãos. Com uma das mãos, aliás, pois com a outra o Magnífico cobre a boca do copo para evitar que se evole o aroma da bebida.
Canhestro, Ascânio copia-lhe os gestos. O doutor destapa o copo, aproxima-o das narinas, aspira o olor, quelle delice! Ao imitá-lo, Ascânio entontece: as emanações do álcool penetram-lhe nariz adentro. Completa a gafe quando, emborcando de um trago o conteúdo do copo, engasga-se, tosse, vá ser forte assim no inferno! Forte mas delicioso, de quanto lhe deram a beber nesses dias, incluindo a champanha, prefere o conhaque. O doutor volta a servi-lo, não comenta nem ri, não viu nem ouviu. Ascânio agora saboreia em pequenos goles como o faz o mestre do bem- viver.
- Veja, Ascânio; as obrigações do meu cargo levam-me a tratar com uma infinidade de pessoas, uma súcia por vezes difícil. Dou-me bem com todo o mundo, é do meu temperamento e do meu ofício. Mas, no meio dessa máfia, de quando em quando deparo com alguém que me chama a atenção pelo talento, pela força interior, pela qualidade, pela fibra. Conheço os homens, não me engano, sei distinguir os que valem a pena, mesmo numa rápida convivência. Desde que conversámos pela primeira vez, na Prefeitura de Agreste, me fixei em sua personalidade: aí está um homem de verdade, un vrai homme, disse para meus botões. Naquela ocasião ainda não tínhamos decidido escolher Agreste: ao contrário, nossas vistas estavam voltadas para o Sul do Estado, uma área entre Ilhéus e Itabuna, no rio Cachoeira: estrada, porto de mar, facilidades, as autoridades locais oferecendo mundos e fundos. Tomei uma decisão: se não nos instalarmos em Agreste, vou convidar este moço para vir trabalhar connosco, na Brastânio. Ele tem fibra e competência.
Aspira o conhaque, duplo prazer, paladar e olfacto. Ascânio modesto, agradece:
- Bondade sua.
- Disse para mim mesmo: se ele permanecer aqui, nesta terra decadente, sua flama se extinguirá, estiolada. Não posso permitir que isso aconteça, vou convidá-lo a vir trabalhar connosco onde estivermos. Mas, tendo nos decidido, felizmente, por Mangue Seco, creio que a Prefeitura de um município industrial poderoso, rico, pode ser o primeiro passo para uma brilhante carreira política de um jovem homem público.
Nos eflúvios do conhaque Ascânio embarca nas palavras inspiradoras, inicia a marcha. O Magnífico Doutor toma da garrafa, a hora não é a mais própria mas a circunstância exige. Prossegue abrindo caminho, despertando a ambição. Carreira política ou empresarial, pois, se após exercer a Prefeitura de Agreste, Ascânio preferir trocar a administração pública pela empresa privada, o convite que não chegou a ser feito permanece de pé: haverá sempre um posto de comando para ele na Brastânio. Homens inteligentes e trabalhadores existem muitos, homens capazes de comandar são poucos.
Parecendo-lhe chegada a hora, oferece:
- Por isso mesmo, quero dizer-lhe que estou, que estamos às suas ordens. Se necessita de alguma coisa, é só dizer, não guarde reserva, não se sinta acanhado, somos amigos.
- Basta a confiança que deposita em mim. Espero poder honrá-la.
- E para a eleição? Para a campanha eleitoral? A Brastânio gostaria de concorrer para as despesas da campanha eleitoral.
- Agradeço mas não é preciso – Finalmente encontra alguma coisa de que se ufanar: - Não haverá campanha eleitoral. Serei candidato único, isso é coisa acertada. Meu padrinho, o coronel Artur de Figueiredo, já decidiu e o povo está todo de acordo. Posso lhe dizer sem vaidade: serei eleito unanimemente. Não preciso de ajuda, muito obrigado. E assim é melhor, ninguém vai poder dizer que apoio a Brastânio por interesse pessoal. Depois, se tudo der certo, se meu sonho se realizar, talvez venha a precisar de sua ajuda. Por ora, não.
Aquela conversa, a última, a mais longa e íntima, transpôs os limites da indústria e do município para entrar pela vida pessoal de Ascânio:
- Falou em sonho. Adoro sonhar, qual o seu sonho?