Episódio Nº 313
Cobra imensa, Oxumarê vinha nas cores do arco-íris, macho e fêmea ao mesmo tempo. Coberto de serpentes, a cascavel e a jararaca, a coral e a víbora, e seguido por cinco batalhões de hermafroditas. Empurravam Vadinho por uma ponte do arco-íris, era um macho retado quando entrou, saiu sestrosa rapariga, donzela derretida. Com seu tridente Exu desfez o arco-íris. Oxumarê enfiou o rabo pela boca, anel e enigma subilatório.
Ogum malhou o ferro e temperou o aço das espadas. Euá com suas fontes, Nana com sua velhice. Rei da guerra, Xangô cercado de obás e de ogans, na corte de esplendor disparando raios e coriscos. A seu lado, Oxum, toda faceira, em dengue desmanchada. Omolu com seu espantoso exército, comandando a bexiga negra e a lepra de milénios, o escarro podre e o pus, todas as doenças. Vadinho, tísico e pestilento, cego e surdo. Exu mastigou as doenças, uma a uma, curandeiro de tribos africanas.
Empunhando o paxorô de prata, lança invencível, Oxalá era dois: o moço Oxoguiã e o velho Oxolufã. Ao seu passo de dança todos se curvavam. Precedendo-o, vinha Yansã, a que governa os mortos, mãe da guerra. Seu grito emudeceu o povo e, como um punhal, rasgou o coração exposto de Vadinho.
Juntos vieram em formação cerrada, com suas armas, suas ferramentas, sua lei antiga. Achando pouco serem tantos, convidaram os orixás da nação grunci e os de Angola, os inkices congoleses e os caboclos. Todas as nações, do sul ao norte, contra Exu e seu egun. Partiram para o choque derradeiro.
Então as donzelas da cidade desnudaram-se e saíram a se oferecer nas ruas e nas praças. Logo nasciam os filhos, aos milhares. Iguais, pois eram todos filhos de Vadinho, todos canhotos e pelo avesso. Pelo mar navegavam casas e sobrados, o farol da Barra e o solar do Unhão; o Forte do Mar transportou-se para o Terreiro de Jesus, e nos jardins brotavam peixes, nas árvores amadureciam estrelas. O relógio do Palácio marcou a hora do espanto num céu carmesim com manchas amarelas.
Via-se então uma aurora de cometas nascer sobre os prostíbulos e cada mulher-dama ganhou marido e filhos. A lua caiu em Itaparica sobre os mangues, os namorados a recolherem e em seu espelho reflectiram-se o beijo e o desmaio.
De um lado a lei, os exércitos do preconceito e do atraso, sob o comando de dona Dinorá e de Pelancchi Moulas. Do outro lado o amor e a poesia, o desassombro de Cardoso e Sª, rindo por entre os seios de Zulmira, tenente-coronel do sonho.
Vinha o povo correndo nas ladeiras, com lanças de petróleo e um calendário de guerras e revoltas. Ao chegar na praça, queimou a ditadura com um papel sujo e acendeu a liberdade em cada esquina.
Quem comandou a revolta foi o Cão e às vinte e duas horas e trinta e seis minutos ruíram a ordem e a tradição feudal. Da moral vigente só restavam cacos, logo recolhidos ao Museu.
Mas o grito de Yansã susteve os homens no pavor da morte. De Vadinho, sem mãos, sem pés, sem estrovenga, sobrava muito pouco: encardida fumaça, cinza esparsa e o coração roto na batalha. Um quase nada, coisa à-toa. Era o fim de Vadinho e de seu carrego de desejo. Onde já se viu finado, em leito de ferro a vadiar, de novo sendo? Onde?
Deu o revertério na batalha. Exu sem forças, cercado pelos sete cantos, sem caminhos. O egun em seu caixão barato, em sua cova rasa, adeus, Vadinho, adeus até jamais.
Foi quando uma figura atravessou os ares e, rompendo os caminhos mais fechados, venceu a distância e a hipocrisia – um pensamento livre de qualquer peia: dona Flor nuinha em pêlo. Seu ai de amor cobriu o grito de morte de Yansã. Na hora derradeira, quando Exu já rolava pelo monte e um poeta compunha o epitáfio de Vadinho.
Uma fogueira se acendeu na terra e o povo queimou o tempo da mentira.
O Episódio de amanhã será o último da História de DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS