REFLEXÕES
A história não se escreve duas vezes, em cada momento as opções, conscientes ou meramente fortuitas, marcam em definitivo o futuro.
É assim na vida dos homens e das mulheres e é assim na vida dos países.
Se aquela senhora, já de idade, que vai a passar no outro lado da rua tivesse casado com o outro namorado, aquele que foi o primeiro amor da sua juventude e com quem rompeu por causa daquela zanga estúpida e sem jeito, teria sido mais feliz?
Nas suas cogitações mais profundas ela gosta de pensar que sim, por vezes, agarra-se mesmo a essa hipótese, vive-a em sonhos porque sabe que a sua história nunca conhecerá versão diferente da que foi na realidade.
Também eu gosto de cogitar sobre o que teria sido a vida dos portugueses e a minha própria, se à saída da 2ª G.G. Mundial o meu país não estivesse casado com Salazar tendo como companheira, na Península Ibérica, a Espanha casada com Franco.
Mas quando eu penso no que poderia ter sido a vida dos portugueses fora daquele casamento não só tenho a certeza de que teria sido diferente como, igualmente, teria sido melhor.
Um dia, Salazar, foi de férias à sua terra natal e um seu vizinho e amigo de infância contou-lhe com orgulho que o filho conseguira comprar um tractor e que, futuramente, o amanho das terras seria melhor e mais fácil, ao que o ditador reagiu dizendo-lhe que isso não era bom, o que ele queria era fugir ao trabalho que o pai e os avós sempre fizeram.
Este pequeno episódio, revelador do pensamento e do carácter daquele homem, não deixa qualquer dúvida de que o nosso futuro teria sido diferente, para melhor, fora daquele casamento.
Parece, às vezes, que certas coisas nada têm a ver com as outras mas na vida dos homens, tal como na natureza, tudo tem a ver com tudo, tudo está interligado e interdependente.
Um mau casamento pode fazer com que, quem tenha nascido doce morra azedo mesmo que, ou talvez por isso mesmo, nunca tenha emitido um grito de descontentamento ou de revolta.
Os portugueses saíram do casamento com Salazar pior do que eram, por muitas toneladas de ouro que ele tivesse deixado no Banco de Portugal.
As personalidades e os comportamentos são moldáveis, há até quem tenha dito que ao nascer somos como que páginas em branco nas quais alguém, posteriormente, irá escrever, o que eu acho ser um nítido exagero especialmente depois de conhecer a minha neta que fez agora 4 anos.
Mas não tenho dúvidas de que o pensamento de Salazar, difundido e propagandeado ao longo de 40 anos pela competentíssima máquina de apoio à sua pessoa e à sua política, deixou marcas profundas, especialmente visíveis após o 25 de Abril.
Perdidas as grilhetas parecíamos um barco à deriva, um órfão à procura de um pai, abríamos a boca de espanto e fixávamos o olhar admirado em todo aquele que de cima de um púlpito improvisado arengava às massas e gritávamos, gritávamos muito, em desfiles e reuniões como se nos quiséssemos vingar pelo silencio de tantos anos.
No entanto, as pessoas apenas queriam ser felizes e ao gritarem todos aqueles chavões demonstravam que não sabiam o caminho e estavam desorientadas.
Salazar, se pudesse ter observado do seu túmulo todas aquelas cenas em que foi pródigo o pós 25 de Abril teria pensado, mais uma vez erradamente, que afinal era ele que tinha razão.
A impreparação para viver em liberdade, para assumir de forma competente e responsável o futuro, as dificuldades para impedir assaltos ao poder por novos candidatos ao lugar do ditador, tudo isso foi uma consequência de 40 anos em que aos portugueses foi coarctada uma vida normal porque sem liberdade democrática a vida não é normal e os cidadãos também não o podem ser.
E a este propósito, reafirmemos o nosso obrigado a Mário Soares que se bateu e ganhou a sua luta pela liberdade dentro da democracia.
Tivesse ele perdido na Fonte Luminosa a marcha pela liberdade e a favor da democracia e anos mais tarde não tivesse concretizado a decisão, já afirmada no seu discurso proferido no Porto, na cimeira dos Partidos Socialistas Europeus, em 1976, de integrar Portugal na Comunidade Europeia, e tudo se teria complicado ainda mais para os portugueses.
E agora, cá estamos nós, em 2009, com a crise, o desemprego e as dificuldades…sempre as dificuldades, e logo alguns saudosistas do passado são capazes de pensar que com Salazar esta bagunça nunca aconteceria porque para essas pessoas liberdade é sinónimo de bagunça.
Eu não penso assim e sou de opinião de que se os portugueses têm a dívida que têm o melhor a fazer é começarem a pagá-la de forma a diminui-la embora, o ideal, era não terem permitido que ela tivesse chegado ao ponto a que chegou e aqui, provavelmente, estaremos a bater no ponto.
Mas a extrema dependência do petróleo que infelizmente não temos e os preços exorbitantes a que recentemente chegaram, ano após ano, foram agravando a dívida e o investimento em energias alternativas, verdadeira solução para um problema estrutural, só foi bandeira e levado a sério no governo de Sócrates.
Falar de disciplina do consumo num momento em que mais de um milhão de portugueses vive dependente de pensões ou outros rendimentos tão baixos, parece mesmo falta de sensibilidade social mas eu pergunto-me se, apesar de tudo, esta situação não é melhor do que aquela que existia no tempo da minha juventude em que nem sequer havia pensões.
A diferença estará na estrutura da sociedade que por um lado perdeu a sua ligação à terra, vivida nas aldeias e pequenos lugares que povoavam todo o país e em simultâneo, a família alargada, solidária, que se desfez com o êxodo para as cidades dando lugar às pequenas famílias.
Alterou-se, em definitivo, a forma de viver e também aqui foram as pessoas da minha geração que mais sofreram os traumas dessas mudanças.
As pessoas que como eu nasceram ainda fora da sociedade de consumo lembram-se perfeitamente de como era possível viver bem e ser-se feliz quando as prateleiras das lojas não ostentavam mais que 10 ou 20% da quantidade e variedade de bens e produtos que hoje temos à nossa disposição, muitos deles inutilidades que nem sequer sabemos para que servem.
Mas, também é preciso reconhecer, que foi esta mesma sociedade de consumo que gostamos de condenar que criou riqueza e milhões de empregos por todo o mundo.
Estudei economia como disciplina acessória e enriquecedora do meu Curso mas, por me ter sido dada por um excepcional professor, Alfredo de Sousa, infelizmente estúpida e prematuramente desaparecido por atropelamento quando atravessava a rua numa passadeira de peões, os seus ensinamentos ainda hoje recordo.
Lembro-me que, da mesma forma que há produtos que se destinam a satisfazer necessidades já existentes, outros há que visam satisfazer necessidades que eles próprios irão procurar criar.
O exemplo que nos dava eram sapatos, sapatos que tinham molas e permitiam que as pessoas se deslocassem aos saltos.
A nova necessidade era “andar aos saltos” e para a satisfazer ali estava o produto indicado “ o sapato equipado com molas”.
Este exemplo, meramente académico, (atenção que já vemos sapatilhas com rodas e jovens que sobre elas, com toda a destreza, tanto andam com rolam) velho de 45 anos, dá-nos a ideia de que é possível endividarmo-nos para satisfazer uma necessidade que nem sequer existe.
Hoje em dia são cada vez mais os produtos que procuram criar as suas necessidades, especialmente no campo das novas tecnologias, mas como nem sempre é fácil descobrir novas necessidades, partiu-se então para os artigos “de marca” que se completam com os “da moda”, para não falar das lojas grumete e dos produtos biológicos que satisfazem necessidades já preenchidas mas têm aquilo que os outros produtos não têm: estatuto, qualidade, o dom de serem preferidos por pessoas que invejamos, com as quais gostamos de nos parecer, pessoas que nos são apresentadas como de referencia porque as vemos em todo o lado e sabemos quase tudo das suas vidas.
Um dos princípios da sociedade de consumo é o de que ele, o consumo, é a chave para a felicidade e através dele, sem qualquer esforço de outro tipo, auto promovemo-nos, melhoramos a nossa imagem, não só aos nossos próprios olhos como, principalmente, aos olhos dos outros.
Tive esta lição comigo próprio quando comprei, há muitos anos, o meu primeiro automóvel.
Lembro-me bem de qual era o meu estado de espírito quando viajei para Lisboa para levantar no Stand o meu Renault 8S, todo amarelinho, com 4 faróis, 1100 cm de cilindrada e, vejam lá, carburador de Corpo Duplo!
Não foi num automóvel mas em felicidade pura que regressei a casa pela auto-estrada Lisboa-Porto que terminava em Vila Franca de Xira.
A pouco e pouco, com o tempo, aprendi que afinal não passava de um meio de transporte que se transformaria numa inestética sucata caso chocasse com ele contra uma das numerosas árvores que ladeiam a estrada para Almeirim.
A felicidade que se obtém através de certo consumo é uma fraude em que todos podemos incorrer mas perigoso, perigoso, será não nos apercebermos disso e insistirmos no erro uma vida inteira.
A felicidade ou a sua procura tem outros caminhos que não os do consumo, não vão dar a nenhum Stand nem à porta de nenhuma loja por mais chique que ela seja, seria demasiado fácil se assim fosse, como as pessoas ricas poderão confirmar em momento de sinceridade.
Pior ainda, é que não temos nenhuma receita para lá chegar e a sua procura faz-se dento de cada um de nós, com equilíbrio, ponderação e bom senso.
E se me permitem um conselho, uma pista, um palpite, o que quiserem chamar-lhe, procurem-na no amor, apostem mais nele, mesmo correndo algum risco. A vida, ela própria, não será um risco?
Acreditem que na velhice o que mais recordamos foi quem amámos e mesmo as coisas que amámos e o que lamentamos foi o que ficou por amar.