Memórias Futuras
Olhar o futuro pelo espelho retrovisor da história. Qual história? Que futuro?
sábado, janeiro 03, 2015
IMAGEM
A vida é uma aventura cheia de riscos e às vezes acaba mal. Que o diga este homem sentado no chão no Cais das Colunas em Lisboa, numa atitude de abandono e resignação. Para ele a vida acaba num fracasso, de degrau em degrau já não pode descer mais. À margem da sociedade tudo já lhe é indiferente. Fosse pelo que fosse a viagem dele num comboio vazio está a chegar ao fim numa estação abandonada e sem destino... Fim da linha!
ZÉ CACILHEIRO
Um quadro do Teatro de Revista à portuguesa com o José Viana e o Carlos Coelho que retrata magistralmente o humor cáustico sobre uma sociedade onde não se podia falar abertamente por causa da polícia política (PIDE) e da rígida moral católica. Estamos a meio da década de sessenta, o regime está acossado pela guerra colonial e o José Viana, como muitos dos seus pares e intelectuais da época eram da oposição. Por isso, os diálogos são "deliciosamente" cifrados e plenos de subentendidos com a condescendência da Censura para a qual o Parque Mayer e as Revistas à portuguesa eram pequenas válvulas de escape do povo às quais fechavam os olhos ou os ouvidos.
Zé Cacilheiro José Viana (1966)
Três amigas: Uma noiva, uma casada e uma amante decidiram fazer
uma brincadeira: Seduzir os seus homens usando uma capa, corpete de couro,
máscara nos olhos e botas de cano alto, para depois dividir a experiência entre
elas.
No dia seguinte, a noiva iniciou a
conversa:
- Quando o meu namorado me viu com o
corpete de couro, botas com 12
cm de salto e máscara sobre os olhos, olhou-me
intensamente e disse: 'Tu és a mulher da minha vida, eu amo-te'. Fizemos amor
apaixonadamente.
A amante contou a sua versão:
- Encontrei o meu amante no
escritório, com o equi pamento
completo! Quando abri a capa, ele não disse nada, agarrou-me e fizemos amor a
noite toda, na mesa, no chão, de pé, na janela, até no hall do elevador!
Aí a casada contou a sua história:
- Mandei as crianças para a casa da
minha mãe, dei folga à empregada, fiz depilação completa, as unhas, escova,
passei creme no corpo inteiro, perfume em lugares estratégicos e caprichei:
capa preta, corpete de couro, botas com salto de 15 cm , máscara sobre os
olhos e um baton vermelho que nunca tinha usado. Para incrementar, comprei umas
cuequi nhas de lycra preta com um
lacinho de cetim no ponto G. Apaguei todas as luzes da casa e deixei só velas a
iluminar o ambiente. O meu marido chegou, olhou-me de cima abaixo e disse:
- Então, Batman, o tacho tá pronto?
...ocê mandou eu arranjar outra... |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 138
Epifânia achou Fadul bem-apessoado,
deitou-se com ele na noite da chegada, voltou a fazê-lo repetidas vezes,
apreciou a magnitude e a destreza da estrovenga mas não se deixou embeiçar, pois
de imediato caíra enrabichada por Tição vendo-o de longe na forja desatando
fagulhas, esgrimindo labaredas.
Xodó vive-se um de cada vez, não sendo
assim não é chamego verdadeiro, é engano e traição que se finda em xingamento e
choro, quando não em facada e tiro.
Epifânia
considerava xodó assunto sério e complicado: ventura e sofrimento, harmonia e
desavença, pugna e reconciliação.
A reconciliação dobra e tempera o
apetite.
Tendo a cabeça feita por Oxum, ou seja,
personificando o dengue e a vaidade, prenha de caprichos, em certas horas mais parecia
filha de Iansan empunhando bandeiras de guerra para impor-se soberana.
Os caprichos, Tição os tolerava
sorridente, achando graça, satisfazia-lhe as vontades. Mandar nele, porém, ninguém
mandava.
No mesmo dia do encontro no rio, ao
ocupar a rede na oficina para prosseguir na vadiação, Epifânia preveniu,
disposta a ocupar o trono e a ditar a lei:
- Não vá querer montar em meu cangote só
por me ver enrabichada. Nós não tem papel passado e não há bem que sempre dure.
Tou hoje aqui
com tu na rede, amanhã tou com o pé na estrada buscando minha melhoria.
-
Não gosto de mandar... - respondeu Castor pondo-se nela: - ... nem de ser
mandado.
Sendo negra cor de breu, uma pé-rapado
sem ter onde cair morta, desacatava como se fosse gringa,
branca, cor-de-rosa e rica; puta de ofício, dava-se ares de senhora dona bem
casada.
Zangava-se facilmente, arrebanhava a
saia, arrogante partia por aí afora:
-
Se tu qui ser mulher, arranje outra,
comigo não vai ser mais.
Passada a raiva, arrependida, retornava
para fazer as pazes e tirar o atraso. Aconteceu em mais de uma ocasião
encontrá-lo acompanhado:
-
ocê mandou eu arranjar outra...
sexta-feira, janeiro 02, 2015
- Carzeduardo, sua muié tá te traino co Arcide.
- Magina!! Ela num trai eu não. Cê tá inganado, sô.
- Carzeduardo! Toda veiz qui ocê sai
pra trabaiá, o Arcide vai pra sua casa e prega ferro nela.
- Duvido! Ele não teria corage....
- Mais teve! Pode confiri.
Indignado com o que o amigo diz, o Carzeduardo finge que sai de casa, sesconde
dentro do guarda-roupa e fica olhando pela fresta da porta. Mais tarde, ele
encontra com o amigo e então, o Carzeduardo relata cabisbaixo:
- Foi terrive di vê!!!... ele jogou ela na cama, tirou a brusa... e os peito
caiu....tirou a carcinha...e a barriga e a bunda dispencaro........ tirou as
meia...e apariceu aquelas varizaiada toda, as perna tudo cabiluda. E eu dentro
do guarda roupa, cas mãos no rosto, pensava:
- "Ai...
Não arremeda um colhão? |
TOCAIA
GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº
137
4
Derretida em riso na porta da oficina,
Epifânia sustentava nas duas mãos a pedra grande e pesada:
-
Encontrei no rio, achei bonita, trouxe pra tu.
Mulher madura e calejada, corpo e
coração curtidos, tinha artes de menina, influída de graça e fantasia. Um
seixo, um fruto, uma flor, um assustado calango verde: um presente a cada dia,
além dela própria a qualquer hora, dádiva principal.
Negro, redondo e liso, o calhau rolou no chão;
a risada marota cresceu nos lábios carnudos da rapariga:
-
Não arremeda um colhão?
Parecer, parecia: um colhãozão enorme e
preto, o de Oxalá, outro não podia ser. Tição riu com a desavergonhada; a
arrogância a fazia agressiva e insolente; tirante, porém, esses ipicilones, era
querida e cativante.
-
O colhão de Oxalá! Vou botar no peji. Os orixás viviam no peji, deuses
poderosos e paupérrimos. Para que ela o entregasse a Oxum em oferenda, Castor
trabalhou no fogo e no martelo um abebê de latão com um pequeno espelho cravejado
ao centro; o flandres alumiava como se fosse ouro, resplandecia: uma opulência.
Colocado no peji para uso e desfrute da mãe
das águas mansas, de lá Epifânia o retirava para com ele se abanar e nele se
mirar. Qual das duas a mais vaidosa? Oxum ou sua filha?
Epifânia possuía um colar amarelo de
contas africanas, seu
maior tesouro, e um jogo de conchas
mágicas com o qual podia adivinhar. Algumas raparigas tinham-lhe medo,
guardavam distância; assustadas, diziam-na feiticeira.
Dera com os costados em Tocaia Grande durante
a entressafra, cruzando caminhos fáceis e seguros, o sol do verão no comando da
vida e das criaturas. A pobreza do arruado se dissolvia na paisagem
incomparável, na formosura do lugar.
Não havendo cacau a transportar, o movimento
de tropas e tropeiros decrescia na entressafra. Um bicho-carpinteiro no cu, as
raparigas não esquentavam pouso, tocavam-se para praças populosas de freguesia
estável.
Enfrentando concorrentes poucas e mixes, Epifânia
reinou quase absoluta na Baixa dos Sapos e na oficina de Castor Abduim.
Na estação do calor não houve esteira
mais requi sitada, mulher-dama mais
em moda - à exceção de Bernarda.
Mas Bernarda não contava: bezerra nova,
exercia em cama de campanha, habitava casa de madeira e se fazia de rogada, desdenhosa.
Na minha juventude
estudei num Colégio Interno na cidade de Tomar que tinha um sector para o
masculino e outro para o feminino funcionando em edifícios distintos.
O dos rapazes era um edifício novo mandado fazer de propósito dado a grande quantidade de alunos, numa zona de expansão da cidade, enquanto as raparigas , em número muito menor, como era de esperar nos anos 50, ocupavam uma moradia antiga mais para o centro, próximo do rio Nabão, ex-libris da cidade.
A separação estava assim, naturalmente, assegurada.
Aos Domingos, a missa era a horários
desencontrados para rapazes e raparigas evitando encontros, quer na Igreja ou nos trajectos de acesso, mas havia um dia por ano, o da Festa do Colégio,
em que os alunos de ambos os sexos se viam… de longe, é certo, e sempre debaixo de
apertada vigilância:
- Era no jogo de futebol com a Escola
Industrial, rivalidades antigas, que tinha lugar no Estádio do Uniã0 de Tomar.
As raparigas ocupavam um sector diferente do Estádio, uma claque à parte, como hoje se usa, por causa das rivalidades violentas.
- Nesse mesmo dia, e como final da
celebração do Dia do Colégio, mas já entrando pela noite, nas instalações do
Cine-Teatro, havia numa espécie de espectáculo de variedades em que os alunos
iam ao palco apresentarem as suas habilidades cantando, dançando ou representando.
Num desses números de dança, uma das
minhas colegas não vestiu por baixo o saiote próprio para as danças de rodopio
e como os lugares da plateia estavam num plano ligeiramente mais baixo que o
palco, quando girou, as saias rodaram e subiram e só não lhe vi a cor da roupa
que trazia por baixo porque, naquela fracção de segundo, fechei os olhos…
Surpreendi-me a mim próprio com
aquele cerrar de olhos e não contei a ninguém para me furtar às críticas
óbvias que me seriam feitas: … então, pá, tens à tua disposição o espectáculo
mais desejado e zás…fechas os olhos ???!!!
Tenho tido muitos anos, bem mais de
meio século, para pensar no por quê daquela reacção instintiva tanto mais que
estou certo, se estivesse avisado para o que iria acontecer, provavelmente não
resistiria à curiosidade.
Não sei… talvez pudor, vergonha, surpresa. Ela não queria mostrar-me nada e o meu instinto recusou-se a ver aqui lo
que não fazia parte do espectáculo, que era do foro íntimo, da sua privacidade. Uma pureza de honestidade... seria?
Há uma qualquer semelhança entre esta
inocente e já longínqua história e as escutas telefónicas e que tem a ver com uma noção de privacidade que faz parte do respeito pelos outros, uma questão de ética do comportamento, de civilização, podemos mesmo dizer.
Na época em que eu estudava no Colégio de Tomar ainda não havia escutas telefónicas, muito longe disso, escutava-se com o ouvido encostado às portas e o olho no buraco da fechadura ou espreitava-se atrás da cortina da janela para se "dar fé", como então se dizia, das entradas e saídas da casa da vizinha em frente da nossa, outros tempos...
Duas pessoas falam
em particular sobre as suas vidas privadas e essa conversa, tal como a roupa
debaixo da menina minha colega na dança do rodopio, uma vez escutada e registada, fica à mercê de quem a
queira ler ou ouvir sem ter direito a tal, infringindo normas éticas e morais,
as mesmas que instintivamente me levaram a fechar os olhos para não ver as
cuecas da minha colega.
Será assim? - Não tenho dúvidas
de que é.
Mas se o assunto das conversas, que embora sendo privadas, são do interesse público porque têm a ver com a nossa segurança, individual ou colectiva pondo em causa direitos consagrados
na nossa sociedade como a segurança, a liberdade, o estado de direito?
- As escutas
telefónicas, as máqui nas de filmar
ou de captação de sons, ocultas ou não, são hoje meios legais postos à
disposição das polícias para o combate ao crime organizado e altamente
sofisticado e de acordo com a opinião
O Estado tem a obrigação de defender
os cidadãos contra toda a espécie de crimes e a utilização desses meios de
escuta nos termos previstos na lei é muito importante, necessário,
indispensável como uma das formas de investigação.
Ficaram célebres as escutas a Pinto da Costa, Presidente do F.C.Porto e as de José Sócrates, umas não autorizadas e outras que não eram dirigidas à pessoa do 1º Ministro mas à pessoa com quem ele falou.
As escutas telefónicas, as má
Aqui chegados, concluímos que as escutas do meu tempo
de rapaz sofreram uma grande evolução como tudo afinal. Deixaram o domínio da
coscuvilhice e passaram a ser um instrumento essencial para a nossa defesa e
segurança. Quem havia então de dizer que a privacidade que me era, instintivamente, tão cara viria a dar no que deu.
Pena é que tudo não fique apenas no domínio das autoridades
judicias e caia na voragem da curiosidade pública das notícias de sensação.
quinta-feira, janeiro 01, 2015
A Europa aguarda ansiosa... |
Ano 2015
Já lhe chamei aqui
o ano zero porque se espera que seja exactamente neste ano que coisas novas
aconteçam neste nosso espaço que é a Europa, mas há uma surpresa em especial que aguardamos
com um misto de curiosidade e ansiedade.
Como pano de fundo temos um conjunto de países que está
pondo em causa as suas formas de governo tradicionais e não são só os países
do Sul ou da orla Mediterrânea em que essas alterações estão a acontecer por força
do desagrado da austeridade com as suas inevitáveis consequências ao nível do
desemprego e da pobreza, não, atinge também países do Norte como a Suécia e o
Reino Unido.
Em épocas de prosperidade tudo está bem, há emprego, há
dinheiro ao fim do mês, comida em cima da mesa com idas ao restaurante, férias
no Verão e, muito importante, podem fazer-se planos para o futuro.
Se isto não acontece começam a levantar-se vozes de
descontentamento e as críticas recaem e sobem de tom sobre as forças políticas
que estão no poder.
Se tiverem pouca expressão não passam de grupos de
protesto que fazem parte da própria democracia e do sistema montado, mas o que
está a acontecer em França com a Srª Le Pen, com a Espanha do Podemos, com a própria
Itália, significa a desagregação dos partidos clássicos e a emergência de novas
forças a exigir, daqueles, amplas coligações como forma de sobrevivência.
E este é o pano de fundo que aguarda o desfecho dos
acontecimentos na Grécia em que a questão que irá ser colocada aos gregos é
continuar ou não na Comunidade Europeia porque rejeitar o Tratado Orçamental e reestruturar
a dívida não parece ser compatível com a manutenção no euro.
Mas é preciso estar atento aos sinais e se é verdade que
a Bolsa de Atenas teve a sua maior queda verificada só num dia nos últimos 25
anos, também não é menos verdade que os investidores reagiram com relativa tranqui lidade menosprezando o efeito exterior da crise.
Em linguagem comezinha o que pare estar a ser dito aos
gregos é: “se vocês qui serem sair o
problema é vosso, amanhem-se... porque nós, zona euro, estamos hoje mais fortes
e preparados para absorver o impacto provocado por uma eventual saída vossa...”
Isto parece, de certa maneira, um jogo de pocker com os eventuais
bleufs em que os jogadores decidem a jogada em função, não das cartas que têm,
mas do que pensam que o adversário sabe sobre as suas cartas e a política
faz-se, sem dúvida, de bleuf.
Mas há vários aspectos deste jogo que o Sirysa e o seu líder,
Alexis Tsipras, têm que estar muito atentos:
- A tranqui lidade e aparente indiferença dos investidores
perante a crise grega é um sinal de força da zona euro;
- Em todas as
sondagens sempre os gregos afirmaram maioritariamente quererem estar no euro;
- Finalmente, e talvez a mais importante, as pessoas têm
horror ao vazio. “Isto é mau mas se sairmos do euro o que acontecerá? – Não será
pior? - Não será o caos?
A saída, neste momento, da zona euro para qualquer país
da Europa não será uma pura ilusão?
Esta é a dúvida que em breve iremos ver desfazer no dia
em que o Syrisa ganhar as eleições na Grécia... se ganhar.
Bom Ano para todos vós.
Bom Ano para todos vós.
quarta-feira, dezembro 31, 2014
Camané - Sei de um Rio
O fado, para ser fado, exige um cantor que reúna dentro de si todo esse ambiente, toda essa trama que gera o fado, que nos faz sentir que é fado... Camané é um desses cantores.
MUIÉ MINEIRA
- Ô cumpadre, cumé que chama mesmo aquela coisa que as muié tem
, quentim, cabeludim, que a gente gosta, é vermeia e que come terra?
-
Uai...quentim... vermeia..? A gente gosta? Uái sô, só pode ser ******. Mas eu
num sabia que comia terra, sô!!
- Pois come, cumpadre. Só di mim, cumeu treis
fazenda.
Ocê gosta tanto assim do São João? |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 136
- Olhou para fora, a chuva apertava no céu de chumbo: - O mês de junho tá chegando. Pra mim não há festa que se meça com a de São João.
Tendo esvaziado o peito, sentiu-se
estouvada e triste; voltou a encostar-se inteira, mesmo chuviscada
aquecia mais que a forja, seu calor queimava - naquela altura já não interessava saber quem
se renderia antes:
-
Não pensava pousar aqui por tanto
tempo, tu me amarrou os pé. Mas tu nunca pediu pra mim ficar.
-
E carecia?
-
Pra tudo tu tem resposta, tu é o Capeta em pessoa. Já tinha acertado
com Cotinha, mas por tu sou capaz de esquecer o São João.
-
Ocê gosta tanto assim do São João?
-
Por demais!
Ela desejava as fogueiras acesas, a
batata-doce, o milho verde, as paneladas de canjica, as pamonhas, os manuês, o
licor de jenipapo, os passos da quadrilha - merecia. As outras todas igualmente
mereciam.
Tição correu a mão na bunda altiva de Epifânia.
A negra Epifânia, mandona, ladina, os homens comendo em sua mão, arrastando-se
a seus pés tratados no relho e na espora: derreada nos braços de Tição, sem
ação, sem mando, quem diria?
-
Se ocê qui ser pode ir brincar o São
João num lugar maior, mais influído. Mas vá sabendo que de todo jeito, nesse
São João vai ter festa em
Tocaia Grande. Na véspera e no dia.
- Quem vai fazer? Tu?
- Também gosto e sinto falta.
- Tu vai fazer pra tua negra?
-
Pra ocê e pra todo mundo.
-
Negro arteiro que tu é. Só quero ver.
-
Pois vai ver.
Epifânia arrulhou, ganiu subjugada,
fendeu-se num vagido:
-
Tou com um quebranto no corpo: tu me enrolou, botou olhado em mim. Tu é Exu Elegbá, tu é o Cão.
-
Meu nome é Castor Abduim, as meninas me chamam de
Tição, um bom rapaz ou ocê não acha?
O vira-lata os acompanhou com o olhar
quando tu e ocê, o malungo e a malunga, rindo um para o outro, voltaram para o quarto
atrás da oficina: ao ouvir a rede gemer, Alma Penada escondeu o focinho entre
as patas dianteiras e adormeceu.
terça-feira, dezembro 30, 2014
Frank Sinatra - My Way (1969)
Aquele a quem chamaram simplesmente : A Voz. Para mim o melhor intérprete desta extraordinária canção.
Ocê tá querendo ir embora, não é mesmo? |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 135
Na manhã de sol nem um raio de luz nem um pingo de calor.
Epifânia, quem sabe de propósito, o
interrompeu:
-
Lugar mais atrasado nunca vi; aqui
não se brinca nem o São João. Arrenego!
Mas ele prosseguiu e completou:
-
Océ tá querendo ir embora, não é mesmo?
Epifânia marchou para Castor, se
rebolando toda, o colo e os seios chuviscados. Ao chegar diante do negro
colocou-lhe as mãos nos ombros largos e o afrontou, voz de queixa e desafio:
-
Tu não ia se importar nem um pouco. Sabichona, aproximou o corpo: conhecia seus
poderes e as fraquezas do malungo. Ele refletiu antes de revidar:
-
O que ocê quer saber é se vou me danar, ficar embezerrado, pra rir de mim. Ocê
é dona de fazer o que qui ser. Nós
não tem papel passado e não há bem que sempre dure, ocê mesmo disse e arrepetiu.
Se alembra? Mas não diga que não me importo.
-
Importa nada. Tu não gosta nem de mim nem de nenhuma.
Mas um dia tu há de gostar deveras e aí
tu vai sentir. Vai roer beira de sino, vai saber o que é bom. - Nos braços o
envolveu.
- Como pode dizer uma coisa dessas? Que
não gosto de ocê? Não tá vendo, não tá sentindo?
Sentia contra as coxas o retesado malho:
- Pra ir pra cama tu gosta, sim. De mim, de
Zuleica, de Bernarda, de Dalila, gosta até de Coroca, de qual é que tu não
gosta?
Cambada
de bobas, tudo doida por Tição, a começar por eu. Diz-que em Taquaras é igual.
Tu sabe o que tu é?
O
corpo do negro junto ao seu, a tesão crescendo, a quem os poderes e as
fraquezas?
Fechou
os olhos: de que adiantava ser esperta, trapaceira? Enrabichada, consumida,
terminava sempre por arriar as armas no
auge da porfia.
-
Tem vez que penso que tu não passa de um menino grande, sem juízo nem querer.
Tu faz por parecer. Mas tu é o Capeta.
-
Océ ainda não arrespondeu: tá pensando em arribar daqui ?
Sem desfazer o abraço, Epifânia afastou
o corpo:
-
Tu quer mesmo saber? Nunca na minha vida passei um São João sem pular fogueira,
sem assar milho, sem comer canjica, sem dançar quadrilha.