Histórias de encantar - sob o zenite de Jesus...
“Era uma vez, há muitos, muitos anos atrás, numa terra muito distante, um Rei que tinha três filhas….” este era o começo de uma das muitas histórias que a minha avó me contava sentada à cabeceira da minha cama, pretensamente para me adormecer e eu ouvia a história cada vez mais desperto e quando ela acabava eu pedia-lhe: “avozinha conta-me outra e ela a rir-se respondia-me: “mas tu julgas que isto é fole de ferreiro?” e eu insistia: “vá, avozinha, conta-me outra” e ela, quase invariavelmente, contava-me outra porque a sua imaginação era prodigiosa tanto quanto era grande o meu prazer em ouvir as suas histórias.
- Jesus perdoa Maria Madalena pelos seus pecados..., pelos nossos pecados. De agora, de sempre...
Vivia em Paio Pires, na “outra banda”, como então se dizia, onde hoje é a Siderurgia Nacional e todos a conheciam pela “t’i Júlia da courela”, sempre bem disposta, já no hospital, pouco tempo antes de morrer, respondia ao médico que lhe perguntava se os dentes eram dela: “são sim Sr. Dr. que já os paguei”... e eu imagino-a hoje, sentada para aí em cima de uma qualquer nuvem rodeada de meninos que morreram, e que agora sentados à sua volta têm toda a eternidade para se deliciarem ouvindo as suas histórias. Eu, que já não irei morrer menino, mesmo assim, se então me encontrar com ela para aí em qualquer nuvem, irei pedir-lhe para me deixar ficar à sua beira e retomar o velho hábito de menino de ouvir as suas histórias.
Era assim a minha avó Júlia que preencheu o meu imaginário de criança, que me transmitiu através das suas histórias grande parte da herança dos meus antepassados, dos conceitos do bem e do mal e que, de entre tantas histórias, também me poderia ter contado a história do Menino Jesus:
...era uma vez, há muitos anos atrás, numa terra longínqua, numa aldeia de gente muito pobre, Belém do seu nome, onde vivia uma menina chamada Maria. Então, a vida era muito difícil, a comida era pouca, não havia remédios para as doenças como há hoje e, por isso, a vida era muito mais curta e tudo tinha que começar mais cedo para que o ciclo da vida, nascer, crescer, procriar e morrer se pudesse concluir para que a humanidade não acabasse. Por isso, os pais de Maria, quando ela tinha 10 anos, combinaram logo o seu casamento com um homem muito mais velho, viúvo, já pai de cinco filhos e que se chamava José.
O casamento deveria ter lugar uns três ou quatro anos depois, como era hábito, mas aconteceu que, entretanto, Maria engravidou e de acordo com os costumes da época e do lugar, a gravidez fora do casamento mas com este já combinado, era considerado adultério e castigado com a morte por lapidação.
O marido era a única pessoa que na qualidade de ofendido lhe podia perdoar e poupar-lhe a vida, mas ao fazê-lo carregaria para sempre o opróbrio, a ignomínia, a vergonha de alguém que tinha sido desonrado e que daí em diante seria apontado por todos e de todos perderia o respeito e consideração devidas a um homem de bem.
As sociedades são moldadas por regras que servem interesses, interesses de alguns, os mais poderosos já se vê, que, no momento se constituem em leis e com o decorrer dos tempos convertem-se em tradições, usos, costumes como lhes quisermos chamar - que têm uma força inquestionável e às quais muitas vezes se obedece. Não porque se perceba bem porquê mas porque foi sempre assim, como se a sociedade se sentisse protegida por essa rigidez de procedimentos, por essa severidade, como se de uma máquina, naturalmente insensível se tratasse, dando a sensação de que o homem não confia em si, na sua capacidade de julgar no caso a caso, de acordo com as circunstâncias e com a natureza particular de cada um.
Mas José era um homem bom e condoeu-se daquela jovem, despertando ainda para a vida, transportando dentro de si uma outra vida, e que de uma forma tão brutal iria ser apedrejada até à morte e num gesto de grande humanidade perdoou-lhe a ofensa e montando-a num burro abandonou a sua terra e restante família e foi com ela viver para outra aldeia distante onde acabaram por ser muito felizes e onde o menino nasceu, cresceu e se fez homem, rodeado pelo respeito que era devido à sua família.
Mas esta é a história de um menino normal, igual a todos os outros que nasceram e viveram naquela terra e naquele tempo e a história a que eu me referia, é outra história, de um menino diferente, chamado de Jesus e que por coincidência também era filho de uma jovem de nome Maria - casada com um homem mais velho, viúvo, igualmente chamado José.
Maria, prometida em casamento a José, recebeu a visita de um anjo que lhe disse que ela tinha sido escolhida por Deus, de quem iria conceber por obra e graça do Espírito Santo o seu filho, o Menino Jesus, que ele enviava à terra para que através da palavra e do exemplo reconduzisse o homem à sua virtude original da qual se tinha desviado por força da ambição desmedida, do ciúme, da avareza, da indiferença e ódio que reinavam na humanidade e logo constou que iria nascer um novo rei que trazia consigo não a espada justiceira para castigar os maus, mas a palavra da esperança para todos os pobres e injustiçados deste mundo.
Foi um nascimento atribulado porque fazendo-se anunciar como um Messias, alguém que vinha reformular a sociedade, imediatamente despertou a desconfiança e temor do rei Herodes, homem mau e déspota que não tinha ascendência judaica mas sim árabe e que por isso nunca colheu as simpatias e muito menos os apoios do povo judeu que governava com mão de ferro, infiltrando espias por todo o lado para que pudesse matar à nascença qualquer tentativa que ameaçasse o seu poder.
Os próprios Reis Magos visitaram Herodes procurando um rei que teria nascido na Judeia, dizendo terem visto a sua estrela no Oriente mas ele não deixando transparecer a sua preocupação pediu aos Magos para voltarem ao seu palácio e avisá-lo se o encontrassem pois também ele queria adorá-lo.
Mas em sonhos os Reis Magos foram avisados que Herodes queria matar o Menino Jesus e, por isso, regressaram às suas terras por outro caminho. Furioso, desorientado na sua mente de homem desequilibrado, sem que nenhum espia ou qualquer um dos muitos sábios que enxameavam a sua corte lhe desse notícias do paradeiro do Menino, logo nasceu a ideia de que se não sabia qual era nem onde estava mandaria matar todos os filhos varões com menos de dois anos nascidos dentro das fronteiras do seu reino, e assim ficou nesta história conhecido pelo autor da Matança dos Inocentes e pela construção do grande Templo de Jerusalém.
Do qual hoje apenas resta uma parede onde os judeus vão confidenciar os seus desejos ou os pecados ou talvez pedir perdão em nome do seu antigo Rei por aquela enormidade monstruosa que foram os soldados, a seu mando, arrancar bebés dos braços das mães e trespassá-los à espada enquanto José, avisado em sonhos, a tempo, já ia longe com a sua mulher e o Menino Jesus a caminho do Egipto.
Nunca sobre uma história de um menino que se fez homem tantas pessoas escreveram (só a biblioteca do Instituto Bíblico Pontifício de Roma possui mais de um milhão de obras sobre o tema e outras tantas no Instituto Bíblico de Jerusalém) porque nenhum menino que se tenha feito homem teve tanta influência sobre o mundo, principalmente o ocidental, de tal forma que nos perguntamos sem encontrarmos resposta o que seria a história do nosso mundo se ele não tivesse nascido.
Que teríamos estudado nas escolas e nas universidades na disciplina de História se a expurgarmos das cruzadas, das guerras e perseguições religiosas, da inquisição, das missões evangélicas mais ou menos por todo o mundo, das perseguições ao povo judeu pela ideia que a Igreja tinha de terem sido eles os assassinos de Jesus, e que teve o seu expoente máximo no holocausto da 2ª G. Mundial, ,etc, etc, etc.
E o que dizer da influência do cristianismo sobre as leis e o direito em todo o mundo?
E a sua influência sobre a arte? O que teriam pintado Miguel Ângelo, Rafael, Giotto, Velásquez e tantos outros? E a Pietá e o famoso retrato de Cristo, uma das obras mais conhecidas e famosas de Salvador Dali? o que existiria no seu lugar?
Como diria o crítico de arte espanhola Francisco Calvo Serraller, quem desconhecer a história de Jesus e do cristianismo não perceberá nada do que vê ao visitar os grandes museus tradicionais, como o do Prado em Madrid.
E Bach, que música teria ele composto sem Jesus e a sua Igreja?
Se não tivesse existido o Menino Jesus e a sua Igreja, que outra religião teria dominado o Ocidente? E com outra religião o que pensaríamos hoje sobre o sexo e a mulher?
Sem dúvida, toda a nossa vida assenta sobre a história do Menino Jesus e da sua herança, história esta que faz todo o sentido quando se olha para ela como uma história de fé mas que levanta todas as dúvidas deste mundo quando nela procuramos a verdade dos factos mas para que serve esta verdade quando a história está perfeitamente interiorizada pelo espírito?
Da história deste Menino já Homem retenho para mim dois momentos que considero os mais belos desta história:
- A cena é narrada pelo Evangelho de João e ocorreu quando um grupo de doutores da Lei lhe levou uma mulher surpreendida em adultério:
-“Mestre: esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Na Lei, Moisés mandou lapidar estas mulheres. Tu que dizes?” E o Evangelista João comenta: “ Diziam isto para o provocar e ter motivo para o acusarem.” Jesus demora algum tempo antes de responder à provocação, certamente não iria permitir que aquela mulher adúltera, atirada como um saco de pecado a seus pés, fosse condenada à horrível pena da morte por lapidação pública.
Que faz ele? Agacha-se, e com o indicador da sua mão direita põe-se a rabiscar umas palavras sobre a poeira da laje do Templo. Os homens que estavam de pé não podiam ver o que ele estava a fazer, ficam nervosos e insistem na pergunta. Então, Jesus põe-se de pé e olhando para eles nos olhos diz-lhes:
“ Que aquele de entre vós que esteja livre de pecado comece a atirar a primeira pedra a esta mulher.”
Ao ouvir estas palavras, conta a narrativa evangélica, “ foram-se embora uns atrás dos outros, a começar pelos mais velhos”.
Então, Jesus tornou a agachar-se e continuou a escrever sobre a poeira. Depois tornou a levantar-se e pediu à mulher que se levantasse também e ao ver que todos os acusadores se tinham ido embora, perguntou-lhe: “Onde estão todos mulher? Ninguém te condenou?” e ela respondeu: “ Ninguém, Senhor.” Jesus disse-lhe então: “ Pois eu tão pouco o farei.”
Ninguém sabe o que teria escrito Jesus na poeira do chão do Templo, talvez tivessem sido simples versos, um poema de compaixão e de condenação da hipocrisia apagado de seguida pelos pés dos fiéis. Se foram versos, eles morreram para sempre docemente sepultados no coração daquela mulher. Mas simples versos ou um poema, Jesus, confrontando os homens com o seu eventual adultério, colocou-os em pé de igualdade com as mulheres e, isso, naquela época e naquela sociedade, para além de belo foi surpreendente e revolucionário.
Finalmente, o grito dilacerante do alto da cruz enquanto agonizava:
“ Meu Deus, por que me abandonaste?”
Este é o derradeiro verso, o último e dramático poema da história do Menino Jesus feito homem, porque é o grito de todos nós incapazes de compreender a vida em toda a sua complexidade; o grito de desespero de todos quantos hoje e ao longo de dois mil anos, foram mortos e torturados pelo ódio estúpido de outros homens; o grito das vítimas de todos os déspotas, tiranos e ditadores deste mundo; o grito de todos os homens e mulheres que foram feitos escravos; o grito de todos aqueles que morrem sem saberem porque morrem; o grito das crianças de olhos desorbitados e ventres inchados que morrem de fome e já não têm forças para gritar; o grito de cada recém-nascido perante o mistério de uma vida que vai começar.
Este foi o grande grito da mensagem de Jesus, o que calou mais fundo no coração dos homens, o que melhor expressou a angústia de toda a humanidade, aquele que só por si atraiu para a sua fé milhares de milhões de homens e de mulheres ao longo de dois mil anos e que poderia ter sido repetido em uníssono por toda a humanidade: “ Meu Deus, por que nos abandonaste?”
PS- Rui, este texto é dedicado à tua bisavó Júlia, mais conhecida pela t’i Júlia da Courela, que por esta altura anda por aí a contar histórias sentada em uma qualquer nuvem, pelos céus de um qualquer mundo e já agora, que temos vindo a falar do Menino Jesus um Feliz Natal para ti, para a Célia e seus pais e para as meninas.