África
- Continente do
Meu Fascínio
Não
nasci em África, não cresci lá nem lá me fiz homem mas, no entanto, mantenho um
fascínio por este continente. A minha relação com ele acontece em três momentos
perfeitamente distintos da minha vida: uma visita de estudo a Angola em
Agosto/Setembro de 1960; uma comissão militar em Angola de Dezembro de 1962 a Março de 1965; e, finalmente, de
Setembro de 1972 a Julho de 1975 em Moçambique, na
qualidade de funcionário público exercendo funções na cidade da Beira como
Delegado da Inspecção de Crédito e Seguros, ao todo, pouco mais que cinco anos,
concretamente cinco anos e três meses.
Refiro com pormenor este espaço do tempo porque a medida do tempo, como já se
aperceberam, é muito enganadora. Anos e anos em que nada acontece, tudo igual,
rotina pura, com grande dificuldade em referenciar o que quer que seja, e
depois, períodos intensos em que parece que tudo se combina para acontecer, no
turbilhão de uma roda do carrossel que nos deixa tontos.
África, acontece na minha vida nesses períodos efervescentes em que os sentidos
se excitam pela novidade permanente do dia a dia, emprestando mais cor às
paisagens e intensidade aos factos que ganham importância especial, porque
aconteceram naquele momento e naquelas circunstâncias.
Tivesse eu nascido e sido criado naquele continente, e o que registaria seria o
resultado de um processo de habituação em que tudo me seria familiar. Mas eu
não tinha nada nem ninguém que me ligasse a África e, por isso, o meu
deslumbramento, choque, surpresa, no contacto com uma natureza que nuns sítios
é vigorosa, asfixiante, mas ao mesmo tempo cúmplice e protectora, e noutros,
extensa, infindável, mística, e entre uma e outra todas as combinações são
possíveis, desde um pôr-do-sol paradisíaco na ilha de Stª Carolina, no arquipélago do Bazaruto, em frente da costa
moçambicana, até à grandiosidade esmagadora dos penhascos da Tundavala, no
planalto Central de Angola.
Depois,
temos as circunstâncias:
- Milhares de jovens como eu foram “despejados,” de um dia para o outro, nas
luxuriantes matas do norte de Angola que, de dia nos enchiam os olhos do verde
da vegetação e à noite os ouvidos com as sinfonias de todos os insectos, batráquios e não sei que mais bicharada. Era como se a
natureza nos interpelasse através das vozes de cada um daqueles seus
representantes: vocês não são daqui,
pois não? - Quem são, o que estão aqui a fazer?
Meses
mais tarde, feitas as respectivas apresentações, esclarecidos os objectivos e
garantido que o problema era de homens contra homens e que não éramos
portadores de serras ou moto-serras que destruíssem a floresta, a casa de toda
essa bicharada, fomos acolhidos em igualdade de condições tendo apenas em nosso
desfavor a ignorância que não nos permitia defender tão bem do feijão-macaco
como aqueles que, conhecendo-o de ginjeira, conseguiam passar-lhe ao lado sem
lhe tocarem.
Mas,
quanto ao resto, lá estava ela, a floresta, feita mãe protectora, sempre
disponível, abrigando-nos, escondendo-nos dos olhares indiscretos porque debaixo
do seu manto protector ninguém encontra ninguém a não ser por casualidade ou
nos caminhos de “pé-posto”, as “auto-estradas” da floresta.
Mas
nos primeiros dias foi assustador porque naquele cenário verde, a imaginação
compunha milhões de olhos fixos em nós enquanto, aos solavancos, em cima dos
Unimogues, progredíamos nas picadas à estonteante velocidade de 10 km/H, perguntando, cada um a si
próprio, qual seria o primeiro a cair trespassado por um daqueles olhares.
-
Oh, meu Alferes, eu tive tanto medo que nem a cabeça de um alfinete me cabia no
cu! - e assim ficou, até ao fim da comissão: “O Cu de Alfinete”. Hoje é motivo
para recordar nos nossos almoços anuais de confraternização.
Foram
dias pouco gloriosos mas profundamente humanos tanto quanto o podia ser o
medo que sentíamos.
Depois,
mais tarde, saídos da zona de guerra, fomos para a fronteira com a
Zâmbia, nas margens do Zambeze, com as suas praias de areias cantantes,
convivendo em paz com as populações, os simpáticos Luenas, que durante quinze
meses nos acolheram com toda a naturalidade, convidando-nos para os seus
batuques de fim-de-semana como nós, de certo, também os teríamos convidado,
para os bailes nas nossas aldeias.
É
impressionante como as pessoas simples do povo, em qualquer parte do mundo, são
tão parecidas no essencial, ficando as diferenças apenas para o que é
circunstancial:
- O acordeonista afina o acordeão ou a guitarra nota por nota, enquanto o
tocador do tambor, que não conhece notas, fá-lo com o calor de um molho de
capim a arder aquecendo a pele do tambor até encontrar o som que melhor
corresponde ao ritmo que mais aquece o sangue e apela à sensualidade.
Nos
bailes das nossas aldeias predominava o ambiente dos desejos contidos, no
batuque a liberdade dos desejos.
Entre os Luenas o amor livre não é pecado
porque não pode ser pecado o que é da natureza. Nos bailes, a natureza é a
mesma, o sangue fervilha da mesma forma, com a mesma intensidade mas o sexo,
fora do sagrado sacramento do casamento, era proibido.
Por
isso os frequentadores dos bailes são os “civilizados” e os dos batuques
“selvagens”;
-
Para uns, o entendimento é que a natureza não pode ser deixada entregue a si
própria porque ser-se civilizado é obedecer a um estrito código de
comportamentos ditados por morais religiosas em que imperam as proibições que
testam as nossas almas, que orientam as nossas vidas, e que, finalmente, nos
devem conduzir ao descanso eterno;
-Para
os outros, a natureza é o que é, e viver que não seja em comunhão com ela,
contrariando-a, não faz sentido.
As
verdadeiras proibições têm a ver com tudo aquilo
que pode pôr em risco as vidas como, por exemplo, aproximarem-se das margens de
um rio sem acautelarem a presença de um furtivo crocodilo. Não que o crocodilo
seja mau, apenas que é da sua natureza poderem comer pessoas descuidadas que
não respeitam os seus locais de vida.
A
natureza é sábia e foi ela que “produziu” o homem depois de muitas tentativas
condenadas ao fracasso. Quantas promessas de homem não ficaram pelo caminho?
Finalmente, lá conseguimos emergir da noite dos tempos depois de milhões de
anos, sem mais do que uma simples ferramenta de pedra usada até à exaustão em
locais próximos àquele onde me encontrava.
Tão
frágeis e indefesos que éramos a nossa sobrevivência tinha a ver com a
cooperação do grupo e a vida deveria ser de um sobressalto permanente perante o
risco que representavam as feras, especialmente o tigre Dentes de Sabre, nosso
predador por excelência.
Tive
a percepção de uma situação dessas quando, um dia, durante uma caçada, (para
intercalar com as latas de feijão com chouriço) em pé, sobre o capô do jeep,
com o motor desligado, perscrutava o horizonte.
Era
uma savana a perder de vista em que só me aventurava munido de bússola.
Polvilhada por árvores esparsas era um cenário inalterado há muitos milhares de
anos por onde os meus antepassados teriam andado.
Ninguém
falava e o silêncio só era quebrado pelo vento que passando pelo capim, não
muito alto, produzia um som de uma grande suavidade, como que um murmúrio.
De
repente, senti um medo ancestral, pânico, que me subiu pela coluna até à base
do crânio: “estava perdido, não via os meus companheiros, encontrava-me à mercê
do tigre dentes de sabre…”
Ainda
hoje, passados já quase 50 anos, guardo essa estranha sensação.
Não
sei quanto tempo durou essa sensação de medo. Breves instantes, com certeza,
mas logo que me libertei dela, saltei para o chão, sentei-me ao volante, pus
rapidamente o motor a trabalhar e só então recobrei totalmente daquela viagem
relâmpago aos tempos dos nossos antepassados mais remotos… foi muito bom voltar
a ouvir o som acolhedor do motor do Jeep Willys.
Não
contei esta estranha experiência a ninguém durante muitos anos, exactamente
porque era estranha e a mim próprio suscitava dúvidas. Será que, de verdade,
ela aconteceu?
Dela,
no entanto, ressaltaram em mim alguns sentimentos, também eles guardados em
segredo:
-
Admiração e reconhecimento pelos nossos antepassados que em condições tão
adversas me permitiram estar ali depois de tantos e tantos anos de uma lenta,
dolorosa e periclitante evolução;
-
Ter sentido, como hoje está provado cientificamente, que aquela foi mesmo a
nossa terra de origem. Eu sei, "estive lá!..."
Mas
pensar a África hoje é interrogar-mo-nos como foi possível um tão grande
retrocesso nas condições de vida dos seus habitantes desde que,
progressivamente, ao longo dos últimos cinquenta anos, a condução política de
todos os seus territórios passou para representantes legítimos das suas
populações.
À
laia de exemplo:
-De
acordo com as Nações Unidas, até há bem pouco tempo 2/3 da população da Zâmbia
estava na miséria;
-Angola
é um dos 5 países mais corruptos do
mundo;
-O
Zimbabué, que já foi o celeiro da sub-região em que se insere, está mergulhado
na miséria ao ponto do seu Presidente Mugabe ter mandado abater os animais de
uma reserva eco-turística como solução imediata para matar a fome à população;
Terá
sido esta a herança que os europeus lá deixaram?
Para
terminar, falemos de Moçambique pela voz de Mia Couto, que começa por afirmar
que “até aqui a independência não passou da
liberdade de escolher outras dependências” e dirigindo-se à consciência de
todos os moçambicanos, que bem poderiam ser todos os cidadãos da África
sub-sariana, fala dos "sete sapatos" que é preciso descalçar:
- A ideia de que os culpados são sempre os outros;
- A ideia de que o
sucesso não nasce do trabalho;
-A ideia de que quem
critica é um inimigo;
- A ideia de que
mudar as palavras muda a realidade;
- A vergonha de ser
pobre e o culto das aparências;
- A passividade
perante as injustiças;
- A
ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros;
Por aquilo que se vê, os 7 “sapatos”
de Mia Couto, bem se podem transformar nos 12 trabalhos de Hércules da
mitologia greco-romana, com a diferença de que os moçambicanos não são deuses,
não se podem socorrer de truques e malabarismos próprios dos deuses e, por
isso, o que se lhes pede parecendo mais simples talvez seja mais difícil.
Geograficamente, os moçambicanos, estão em cima do Vale do Rift que há milhões
de anos atrás foi o berço dos nossos antepassados mais remotos. Um deles viria
a transformar-se naquilo que somos
hoje.
Será que os moçambicanos se conseguem transformar, mesmo que não seja
completamente, naquilo que Mia Couto
pretende?
- Desejamos sinceramente que sim.
PS:
África
- O Continente do Meu Fascínio:
Não mais voltei ao
continente do meu fascínio e também não o desejo. Depois de paisagens
impressionantes, momentos exaltantes, com cidades alindadas com gente humilhada
lá dentro, não arrisco ver fome, miséria e degradação promovida por aqueles que
lutaram pela independência mas sucumbiram à ambição do poder. Ganharam a
guerra, perderam a paz.
Conheci
Angola, Moçambique, Zâmbia e Zimbabué, estas últimas em breves visitas, todas
diferentes, com a marca dos colonizadores.
Sei que
não é justo, peço desculpas, mas prefiro recordar as imagens dessa África que
conheci. O mal que os outros nos fazem é menos grave do que aquele que fazemos
a nós próprios...